A imprestável delação do tenente-coronel Mauro Cid. Por Edward Magro

Atualizado em 16 de setembro de 2023 às 10:51
Mauro Cid na capa da Veja

POR EDWARD MAGRO

Até o final da semana passada, era líquido e certo que as muitas investigações dos possíveis crimes cometidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu entorno, conduzidas pela Polícia Federal, se encaminhavam para seu final, pois já se havia coletado um enorme conjunto probatório a ponto de ser desnecessária uma delação do tenente-coronel Mauro Cid.

Eis que, no final da semana passada, o STF homologou uma delação premiada de Cid, pelas mãos de um advogado conhecido por ser contra o uso deste instrumento.

Muito se especulou, as esperanças cresceram e a expectativa geral era de que o tenente-coronel apresentaria, entre muitos outros crimes cometidos por Bolsonaro e seu grupo mais próximo, o roteiro claro de como a tentativa fracassada de golpe fora urdida, quem organizou, quem financiou, quem fez o quê, e quem estava no controle.

A jornalista Mônica Bergamo, para ficar num exemplo, escreveu na Folha: “Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro, deve citar, entre outros, o general Augusto Heleno, que foi chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo passado, e também o general Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência”.

Outras colaborações eram esperadas para se esclarecer crimes como o roubo de joias, o gabinete do ódio, a fraude dos cartões de vacinação, a gastança desenfreada com o cartão corporativo, entre outros. Aparentemente, seria fácil elucidar todos os crimes, afinal o tenente-coronel, segundo o próprio ex-presidente, era seu homem de confiança e tinha acesso irrestrito a tudo o que acontecia no seu entorno.

Mas…

Já em liberdade-tornozeleira, o militar, usando e abusando do poder sedutor que a farda continua exercendo sobre parte significativa do jornalismo brasileiro, se lançou de corpo e alma na construção de uma nova identidade, a de um Cid humano, pai de família dedicado, marido carinhoso, filho sensível, que pode até cometer delitos para proteger sua família. Um servidor cumpridor de ordens que  “é leal ao superior, mas protege o subordinado”, de acordo esta edição da Veja.

Com a ajuda providencial da mídia, em apenas uma semana “veio à luz” um Cid humano, demasiado humano!

Tão humano e leal que, ainda nesta mesma reportagem, isentou o núcleo militar bolsonarista de qualquer participação na tentativa de golpe, mesmo sendo esse núcleo beneficiário direto caso a conspiração tivesse êxito.”Nunca vi o general Braga Netto levando nada ao presidente, nenhuma proposta. O general Ramos desapareceu naquele período. O general Heleno estava mais preocupado com a saúde do presidente do que com os manifestantes”, disse ele. Ou seja, o núcleo militar de Bolsonaro é formado por militares democratas.

No meio da semana, na medida em que o tenente-coronel avançava na construção de sua nova persona, as expectativas sobre a qualidade de sua delação retrocediam, já se tornava claro que a delação tinha jeito de cavalo de Tróia.

Parte vazada da colaboração dizia que o tenente-coronel assumia unilateralmente a responsabilidade por fraudar dois sistemas do Ministério da Saúde – o do Programa Nacional de Imunizações e o da Rede Nacional de Dados em Saúde – para emissão de carteiras de vacinação falsas. Na Veja, candidamente ele disse que cometeu esse crime para “ter em mãos uma espécie de salvo-conduto para ser usado caso a família fosse alvo de eventuais perseguições depois de terminado o governo.”

Ele se esqueceu de dizer, e a repórter deve ter se esquecido de perguntar, que além das carteiras falsas emitidas para sua própria família, ele também emitiu carteiras falsas para a família Bolsonaro.

Ao assumir integralmente o crime de violação dos sistemas, todos os outros envolvidos/beneficiários, incluindo o ex-presidente, se tornam inocentes, isentos de culpabilidade e o tenente-coronel pagará sozinho a pena, que é a mais curta e, como há benefícios previstos no acordo de delação, provavelmente em muito pouco tempo ele estará livre.

A única acusação que restou da delação é o assalto à “joalheria do Planalto”, mesmo assim de maneira bastante frágil.

A ser verdade o que se tem publicado – lembrando que via vazamento, pois a delação está sob sigilo – o tenente-coronel citou apenas a comercialização de dois relógios, com a devida justificativa de que “a venda pode ter sido imoral? Pode. Mas a gente achava que não era ilegal”.

O valor dos relógios roubados do patrimônio público renderam 68 mil dólares para Bolsonaro, que recebeu o dinheiro da comercialização das mãos do próprio delator, “em espécie”, parte do valor (não especificado na entrevista) pago em solo estadunidense.

Me parece que aí está o “pulo do gato”.

Ao dizer que pagou em dinheiro vivo, não há registro de transferência “auditável”, ao contrário das urnas eletrônicas.

Caberá à justiça brasileira provar que o valor recebido foi depositado na conta-corrente de Bolsonaro, o que obviamente é impossível. Criminoso não assina recibo. Bolsonaro se safará.

O que é visível ao final da primeira semana pós homologação é que a delação do tenente-coronel constrói uma saída honrosa para os militares e deixa uma larga avenida aberta para livrar Bolsonaro da cadeia.

Em contrapartida, Cid será expulso do exército, sua esposa será declarada “viúva” e passará a receber integralmente o salário do marido-vivo que, por sua vez, pegará uns poucos meses de cadeia e estará livre em muito pouco tempo. O resumo da ópera-bufa é que, pelo que tem sido vazado até agora, trata-se de uma delação salva-todos.

A entrevista à Veja coloca a delação em estado terminal, imprestável. Melhor seria, a bem da verdade factual, que a delação seja cancelada e que o tenente-coronel seja recolhido de volta à prisão, antes que o cavalo de Tróia seja aberto.