A inovação da Globo: fazer merchã com pedofilia na novela das 9. Por Donato

Atualizado em 6 de fevereiro de 2018 às 21:23
Julia Dalavia, a Adriana de “O Outro Lado do Paraíso”

Os autores de novelas, os atores que nelas atuam e as emissoras que as produzem são unânimes em afirmar, sempre que questionados, que as obras tratam da realidade, que mostram o país de fato, que retratam o cotidiano como ele é.

Novela, segundo eles é importante para o país, pois ‘informa’.

Pois bem.

O telespectador mais desavisado e sedado pela realidade ali na telinha talvez nunca tenha se dado conta da quantidade de propagandas embutidas nas cenas exibidas. Um banco, uma marca de carro, um iogurte, um xampu.

Nada que aparece no cenário está ali gratuitamente. Todas as marcas que apareceram ou foram citadas por personagens pagaram para essa finalidade.

Um iogurte é inofensivo; um protetor solar é até didático. Mas a Globo enveredou por uma seara (opa, Seara, olha eu aqui, quero meus 10%) altamente perigosa – para não dizer irresponsável – ao fazer merchandising de um coach chamado José Roberto Marques em um capítulo da novela “O Outro Lado do Paraíso”.

Uma personagem, vítima de pedofilia praticada pelo padrasto, é incentivada por outra a substituir terapias conduzidas por psiquiatras ou psicólogos por um tratamento com um coach.

Seria mais rápido, segundo a conselheira. Ao final do capítulo, o IBC (Instituto Brasileiro de Coaching) aparece nos créditos atestando o merchã.

No dia seguinte, José Roberto Marques estava radiante com o capítulo e postou nas redes sociais, como se tivesse sido pego de surpresa:

“Ihuu!! Estou em êxtase! Estou levitando!! Jesus toma conta! É muita benção na história do coaching”, escreveu ele, dando a entender que coach é bom mas sem jesus não funciona.

“Walcyr Carrasco é coach formado pelo IBC e resolveu levar o tema para o horário nobre da TV”, completou. A postagem deixou ainda a dúvida se então o merchan foi pago ou se foi permuta, já que o autor fez o curso.

O Conselho Federal de Psicologia e vários conselhos regionais manifestaram-se em repúdio.

“O Outro Lado do Paraíso, por se tratar de uma obra capaz de formar opinião, presta um desserviço à população brasileira ao tratar com simplismo e interesses mercadológicos um tema tão grave como o sofrimento psíquico de personagem cuja origem é o abuso sexual sofrido na infância. Quanto ao argumento de que se trata apenas de ficção, lembramos que são as novelas da Rede Globo que, como estratégia de elevar a audiência, frequentemente buscam embaralhar as barreiras do ficcional e do real, entre outras formas, introduzindo nas tramas fatos e temas candentes da sociedade. É consenso no Brasil de que pessoas com sofrimento mental, emocional e existencial intenso devem procurar atendimento psicológico com profissionais da Psicologia, pois são os que tem a habilitação adequada. Isso é amplamente reconhecido por diversas políticas públicas, entre elas o Sistema Único de Saúde (SUS)”, diz um trecho da nota do CFP.

Desde que o tema coaching começou a ser tratado na novela, o presidente da Sociedade Latino Americana de Coaching, Sulivan França, já havia enviado uma carta à TV Globo relatando que a abordagem do assunto estava completamente equivocada.

Ao tomar conhecimento de que a trama havia piorado ainda mais a situação ao misturar alhos com bugalhos, ao ver que conceitos eram tratados de forma totalmente equivocada, ele fez o alerta.

“A coisa começou a ficar complicada quando ela (a personagem) começou a fazer comentários dando a entender que curava traumas, o que só um psicólogo pode tratar. Comentei com colegas que precisávamos enviar alguma coisa para a Globo, para avisar que isso já é uma questão de saúde, não cabe ao coach. A gente não tinha conhecimento que aquilo era um merchan. Quando foi na sexta, fizeram aquela lambança em rede nacional, com a menina afirmando coisas que não tem absolutamente nada a ver”, disse ele.

O coach nasceu com a finalidade de apresentar meios (as tais ‘ferramentas’) que propiciem uma melhor produtividade, um melhor relacionamento entre funcionários, uma base para se progredir profissinalmente. Nasceu voltado para atender a grandes companhias. Alçado ao modismo, gerou filhotes.

Hoje em dia há coach para infinitos segmentos. Menos, claro, para a a cura de doenças e traumas. Não há via rápida para esses casos. É algo como receitar Advil (mais 10%, por favor) para alguém com câncer.

O final da nota oficial do Conselho Federal de Psicologia traz uma advertência semelhante às contidas nas propagandas de cigarro:

“O CFP faz um alerta à sociedade para que não se deixe iludir. As pessoas devem buscar terapias adequadas conduzidas por profissionais habilitados para os cuidados com a saúde, particularmente a saúde mental.”

Essa mensagem deveria constar nos créditos ao final de todas as novelas, acrescidas de um ‘assistir novela elimina neurônios’.

O merchã do IBC