A Irlanda não é aqui: a descriminalização do aborto na guerra contra o fundamentalismo brasileiro. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 3 de junho de 2018 às 17:34
O Brasil está a cada dia mais perto – a passo de formiga, é verdade – de tratar suas mulheres com alguma humanidade.
A suprema corte convocou para junho audiências públicas para ouvir  especialistas sobre os efeitos da criminalização do aborto.
Desde 1940 – de quando data o nosso antiquado, quase obsoleto Código Penal – as leis do nosso país nos violentam. O aborto só é permitido em caso de risco de vida para a mãe ou estupro, o que põe em cheque o principal argumento dos conservadores contra o aborto: o direito à vida.
Se uma mulher aborta porque não tem condições se parir ou simplesmente não tem o desejo de ser mãe, ela é uma criminosa, assassina de criançinhas. Mas se ela aborta porque foi estuprada, tá sussa.
Relativiza-se o “direito à vida” porque a parcela da população que é contra o aborto, na verdade, está pouco se lixando para os fetos: a questão é castigar a mulher que “abriu as pernas porque quis”, como se a maternidade encarada como punição resolvesse a questão na prática, quando, na verdade, só serve para saciar a misoginia dos conservadores e manter no Brasil uma nociva mentalidade provinciana – uma máquina de mortes por abortos clandestinos e prisões.
Na Irlanda, país mais conservador da Europa, com 90% de população católica, o aborto acaba de ser descriminalizado. Antes disso, a lei já havia sido flexibilizada para permitir que as irlandesas fossem abortar em outros países da Europa.
Além do provincianismo, o que tanto nos afasta da Irlanda – e dos demais países que viram despencar as taxas de aborto depois de descriminalizá-lo?
Temos um palpite preocupante: pior do que um país 90% católico é um país que tem no Congresso uma bancada evangélica.
No Brasil, a laicidade do Estado é uma piada. Deputados – alô Cunha, só assim lembramos que você existe – pedem criminalização até da pílula do dia seguinte. Projetos de lei são fundamentados em Deus (qual deles, queridos?) e na Bíblia. O que é um crucifixo nos tribunais e um “deus seja louvado” nas cédulas de real perto dessas aberrações fundamentalistas?
A situação das mulheres é mais grave no Brasil porque não há, na prática, separação entre política e religião, e os conservadores ainda não aceitaram que bíblia não é e não será Constituição.
Não é de hoje que, diante da efervecência feminista no país, a descriminalização do aborto já não pode ser ignorada pelo governo, pelas Instituições e pela Sociedade Civil, que, a despeito disso, têm evitado o assunto ano após ano.
O que ouvirá Rosa Weber dos especialistas? O que o mundo inteiro já sabe: a criminalização do aborto não impede que mulheres abortem, apenas as obriga a a fazê-lo em condições inadequadas ou clínicas clandestinas caríssimas (as ricas abortam, as pobres morrem com um citotec boceta adentro).
A descriminalização do aborto não é sobre pró-vida X contra-vida, porque ninguém é contra a vida: a briga é entre fundamentalismo e liberdade.
Pela vida das mulheres, esperamos que dessa vez Rosa Weber não deixe de seguir a razão para seguir o entendimento da maioria – leia-se: curvar-se às pressões do fundamentalismo religioso no Brasil.