A irresponsabilidade do Executivo, a coragem do Judiciário e a omissão do Legislativo. Por Kakay

Atualizado em 6 de agosto de 2021 às 7:50
Luiz Fux, Arthur Lira, Jair Bolsonaro e Rodrigo Pacheco. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Kakay

Na minha terra há uma estrada tão larga que vai de uma berma a outra.

Feita tão de terra que parece que não foi construída. Simplesmente, descoberta.

Estrada tão comprida que um homem pode caminhar sozinho nela.

É uma estrada para onde não se vai e nem se volta.

Uma estrada feita apenas para desaparecermos.”

– Mia Couto no poema Estrada de terra, na minha terra

Chegamos a tal ponto de deterioração da política por parte do governo Bolsonaro que, muitas vezes, é difícil acreditar no que estamos vendo acontecer. Não é uma questão de disputa política e de ocupar espaços legítimos como sempre acontece nos regimes democráticos. O baixíssimo nível do presidente da República dita o tom das ações do seu governo. A sua fixação por mentiras, que foi a tônica de toda sua campanha, é reproduzida como método de governo. Mentira e intimidação.

A propagada balela de que o presidente poderia provar a fraude nas eleições e a pregação pelo voto impresso, sendo contrário às urnas eletrônicas, têm vários objetivos. Busca plantar uma dúvida nos seus seguidores, a absoluta maioria sem nenhuma capacidade de discernimento, para propiciar futura investida na anulação de uma eleição em que for derrotado. Também tem como meta colocar os tribunais em posição defensiva e, se possível, desacreditados.

Um presidente fraco, sem prestígio na cúpula das Forças Armadas e malvisto internacionalmente, mas que conta com o apoio de grupos fanáticos e de boa parte da escória política. Busca a desmoralização das instituições, até para tentar puxar para o chão o discurso político. E, ele sabe, com uma iminente derrota política sua e do seu grupo, a possibilidade de eles serem responsabilizados criminalmente, depois do mandato, é muito grande.

Daí, em parte, o desespero que o leva a agredir pessoalmente, abaixo do nível da cintura, os poderes constituídos e as autoridades. A provocação vulgar que o presidente da República fez ao ministro Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com xingamentos pessoais, é não somente uma evidente quebra de decoro, mas uma forte tentativa de acuar e intimidar o Judiciário.

O presidente tem a informação de que, com o Congresso semicontrolado –ele sabe que ainda tem a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito)–, é do Judiciário que podem vir as decisões que o levem às cordas. Um Congresso que não se situa à altura da grave crise pela qual passamos abre um espaço enorme para um Judiciário mais atuante.

Por isso as surpreendentes, corretas e corajosas medidas tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Numa demonstração de maturidade, responsabilidade institucional e compromisso com a democracia, reagindo às vis provocações, o corregedor-geral eleitoral, ministro Luís Felipe Salomão, determinou a instauração no TSE de um inquérito administrativo para apurar a responsabilidade dos relatos e declarações sem comprovação de fraude no sistema eletrônico de votação com ataques à democracia.

A Corte eleitoral, em boa hora, já se posiciona em defesa da legitimidade das eleições de 2022. Medida necessária, pois o presidente da República descaradamente fala em não aceitar o resultado do pleito eleitoral. Como um siderado pode admitir que houve fraude até nas eleições nas quais ele saiu vitorioso. É um voo cego, uma grande quantidade de fake news e de acusações sem nenhuma credibilidade.

Em um movimento até ousado, mas com grande respaldo jurídico e com a consciência da responsabilidade de manter íntegra a democracia, as instituições e a paz social, o TSE, por unanimidade de votos e sob a liderança do seu presidente, o ministro Luís Roberto Barroso, apresentou inédita notícia-crime junto ao Supremo Tribunal Federal para apurar possível responsabilidade criminal do presidente da República em relação aos fatos investigados no Inquérito 4781-DF. Na linha do imortal Guimarães Rosa:

O correr da vida embrulha tudo.

A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.”

Esse é o famoso inquérito que apura as fake news que, em março de 2019, desestabilizavam a segurança dos poderes, especialmente do Poder Judiciário e do STF. A história vai fazer justiça ao então presidente Dias Toffoli, que teve a coragem de determinar a instauração e de designar o ministro Alexandre de Moraes para conduzi- lo. A competência técnica e o destemor do relator foram fundamentais para o enfrentamento daquele momento delicado. E que continua perigoso.

O ministro Alexandre de Moraes, no uso das suas atribuições e com a responsabilidade do seu cargo, determinou a imediata abertura do inquérito ressaltando que era imperioso apurar as condutas do presidente da República. É importante ressaltar que o relator, expressamente, apontava que deveria ser investigado o “modus operandi de esquemas de divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário, o Estado Democrático de Direito e a Democracia.

A resposta do chefe do Executivo é, de maneira mais uma vez desrespeitosa e golpista, a ameaça de agir fora das 4 linhas da Constituição. Ou seja, expressamente ameaça dar um golpe e quebrar a ordem constitucional. Tivesse o presidente da República força para tal, esse propalado golpe já teria sido efetivado faz tempo. Remete-nos ao grande Augusto dos Anjos, no poema O Deus Verme:

Fator universal do transformismo.

Filho da teleológica matéria.

Na superabundância ou na miséria.

Verme – é seu nome de batismo.

[…]

Almoça a podridão das drupas agras.

Janta hidrópicos, rói vísceras magras.

E dos defuntos novos incha a mão…

Ah! Para ele é que a carne podre fica,

e no inventário da matéria rica,

cabe aos seus filhos a maior porção.”

E tudo isso com a CPI trabalhando para apurar as provas de crimes comuns e de responsabilidade. Inclusive com foco nos gabinetes paralelos que, parece, faziam dos espaços públicos ambientes privados com tenebrosas transações. Muito sintomática a determinação de manter em sigilo por 100 anos as informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome dos filhos do presidente.

É necessária uma reflexão sobre a gravidade do momento. As ameaças de ruptura institucional e de golpe já não são mais veladas. Parece óbvio que os poderes constituídos devem reagir à altura. O Judiciário não tem faltado ao Brasil na defesa da Constituição e da estabilidade democrática. Embora com previsão constitucional, o caminho do TSE para o resgate da democracia, até com a cassação da chapa presidencial, parece ser a última saída. Sempre me angustia a hipótese de cassação pela Justiça Eleitoral de alguém eleito com milhões de votos. Embora possa vir a ser a opção possível para nos livrar do caos e da barbárie.

Tenho insistido na saída via Congresso Nacional. Tive a honra de, como advogado, assinar o que se convencionou chamar de “superpedido de impeachment”, uma compilação técnica das dezenas de pedidos que dormitam nas gavetas do presidente da Câmara. Assim como assinei a petição, juntamente com a comissão criada pelo Conselho Federal da Ordem, endereçada ao procurador-geral da República visando a responsabilizar o presidente da República por omissão no enfrentamento da crise da covid e pela morte de milhares de brasileiros.

O impeachment, embora não deva ser banalizado, é plenamente justificado para enfrentar esse verdadeiro serial killer de crimes de responsabilidade. Já passa da hora de a sociedade cobrar uma atitude do Congresso Nacional. O Poder Legislativo tem que sair do imobilismo. Ouvir a voz do povo. Sentir a presença dos mais de meio milhão de brasileiros que morreram, em parte pela irresponsabilidade do governo. Pensar nos milhares e milhares de órfãos fora da hora, de famílias desfeitas, de sonhos amputados e de um exército de solidão a vagar tristemente Brasil afora. É preciso sair do círculo de giz invisível que nos aprisiona e nos tira a voz. O medo do golpe não pode ser maior do que o nosso compromisso com a democracia.

Amparando-nos no poeta Boaventura de Sousa Santos:

não gosto de ver tanta água reunida

sei que é o mar

mas nada é o que parece

visto de Guantánamo

o mar são grades de infinitas tessituras

visto de Gorée

é o marulhar multissecular de lágrimas exangues

preferia que a água se dispersasse.”