A lição preciosa de Jesus sobre não passar o Natal com sua tia fascista. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 23 de dezembro de 2019 às 19:25
Cena de “Roma”, de Alfonso Cuarón

Meu irmão José Roberto, professor de matemática, tenista consagrado no Caxingui cuja carreira promissora foi abreviada por uma traiçoeira canelite, definiu Jesus Cristo como “lindo e brutal, não necessariamente nessa ordem”.

Zé lamentava os rompimentos familiares por conta da adoração cega e estúpida ao apóstolo do ódio Jair Bolsonaro.

Primos de primeiro e segundo grau, cunhados, tios e tias mais ou menos distantes que saíram do armário do fascismo, com os quais tornou-se impossível conviver.

Você também passou por isso, eu sei.

Mas, antes de ficar triste, pense no que Jesus falou.

Não precisa ser cristão, evidentemente. Basta não ser obtuso.

Segundo o Evangelho de São Mateus, ele estava pregando quando foi procurado por Maria, que estava acompanhada dos filhos.

Queriam que ele fosse embora.

Ao ser informado disso, Jesus respondeu na lata: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”

Apontou para todos os que ali estavam e disse: “Eis minha mãe e meus irmãos”. Fim de papo.

JC põe para correr sua genitora, Nossa Senhora, e os manos. Terrível. Especialmente para um bom menino judeu.

É doloroso, mas as ligações consanguíneas não valem per se.

O amor, a compreensão, a inteligência, a empatia (a agricultura celeste e o coração, canta Jorge Ben) não estão no sobrenome.

Sua família — a nossa — é o mundo.

Saramago descreve assim a cena:

Devo falar-te, Fala, então, Trago recado da nossa mãe, Estou a ouvir-te, Preferia dar-to a sós, Ouviste o que eu disse. Maria de Magdala deu dois passos, Posso retirar-me para onde não vos oiça, disse, Não há na minha alma um pensamento que não conheças, é portanto justo que saibas que pensamentos teve minha mãe a meu respeito, assim pouparme-ás o trabalho de tos contar depois, respondeu Jesus. A irritação fez subir o sangue à cara de Tiago, que deu um passo atrás, como para retirar-se, ao mesmo tempo que lançava a Maria de Magdala um olhar de cólera, mas onde se percebia também um sentimento confuso, de cobiça e rancor. No meio dos dois, José estendia as mãos para retê-los, era tudo quanto podia fazer. (…)

Que resposta devo levar à nossa mãe, Diz-lhe que as palavras do seu recado chegaram tarde de mais, que essas mesmas palavras as soube dizer a tempo José e ela não as tomou para si, e que ainda que um anjo do Senhor lhe apareça a confirmar tudo quanto eu vos narrei, convencendo-a enfim a ela a vontade do Senhor, a casa não tornarei, Caíste em pecado de orgulho, Uma árvore geme se a cortam, um cão gane se lhe batem, um homem cresce se o ofendem, É tua mãe, somos teus irmãos, Quem é a minha mãe, quem são os meus irmãos, meus irmãos e minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora em que eu a proferi, meus irmãos e minha mãe são aqueles que em mim confiam quando vamos ao mar para do que lá pescam comerem com mais abundância do que comiam, minha mãe e meus irmãos são aqueles que não precisem esperar a hora da minha morte para se apiedarem da minha vida, Não tens outro recado para levar (…) Vamo-nos, Maria, os barcos estão a sair para a pesca, os cardumes reúnem-se, é tempo de ceifar esta seara.

Lindo, brutal e libertador, como diz o Zé.

Amém.