A madrugada de 1200 horas: entre uma dor de barriga e um câncer

Atualizado em 10 de novembro de 2014 às 15:50

AFTERDEATH

Passa um pouco da uma da manhã. Desligo o telefone. Falava com uma amiga. Deito à espera costumeira de uma indicação se vou conseguir dormir logo ou se devo me ocupar e tentar mais tarde. “Tente mais tarde, você ainda não está com sono”, penso – o que não é um problema, posto que é a resposta mais comum.

Meu pai e minha irmã dormem no quarto ao lado. Ou talvez tentem, notívagos como eu. Pai mora fora da cidade, mas passa uns tempos aqui em casa. Quando ele vem a São Paulo, Irmã fica com ele. Geralmente passam o dia absortos no gosto mútuo pela leitura.

A esta altura, alguns minutos se passaram desde que desligara com Amiga, e começo a sentir uma dor na barriga. É leve. É confusa. Hora parece estar nas costas, hora no abdômen.

Procuro um analgésico e não encontro. A lógica, junto com alguma preguiça, me convence que eu devo esperar passar. Sempre passou, afinal. Mas isso não dura muito. Perto das três horas, sentindo a dor muito mais forte e incapaz de ir à drogaria que fica há uns 200 metros de casa, sigo ao quarto onde Pai e Irmã estão instalados.

Pai dorme. Irmã está acordada. “Cá, vamos comigo à farmácia? Estou com uma dor muito forte”, balbucio. Pai acorda imediatamente, o que é estranho. Não acho que teria acordado se eu tivesse falado “vamos assistir um filme”, mas “dor” ou “vamos à farmácia” parece ter ligado um botãozinho de emergência nele.

Irmã se prontifica ir. Pai considera pronto-socorro. Não que eu não tivesse feito a mesma consideração, mas pensava em tentar um Buscopan antes. Preguiça, novamente.

Pai insiste no pronto-socorro, e eu topo. Vamos a um cujos médicos não me inspiram muita confiança, mas é perto de casa, tem atendimento rápido e é coberto pelo plano de saúde. E, afinal, é só uma dor de barriga, não é nenhum câncer.

No caminho, talvez pelo balançar do carro, a dor se intensifica. Já era forte, mas agora ficara realmente intensa, daquelas que você só é capaz de suportar se contorcendo e fazendo careta. Ali, eu tinha certeza que havia algo realmente errado acontecendo. Não podia ser uma bobagem qualquer.

No hospital, algumas possibilidades de diagnóstico são apontadas pelo médico. As mais prováveis eram intestino obstruído, pedra no rim descendo pelo canal de cujo nome não lembro agora e apendicite. O exame confirma apendicite.

“Essa é uma cirurgia de urgência, pois há risco de supurar”. Supurar, para quem não sabe, é estourar o apêndice, fazendo com que comida e fezes entrem em contato com o interior do abdômen. Eu não sabia, aprendera ali. “Por isso o cirurgião já está a caminho”, acrescentou.

Muito bem.

Eu nunca havia feito nenhuma cirurgia. Sempre tive pavor de anestesia geral, porque 1: já tive péssimas respostas psíquicas a drogas, razão pela qual sequer bebo há quase dez anos. E 2: tenho um conhecido, irmão de um velho amigo, que teve um problema sério com anestesia. Ele, uma pessoa perfeitamente normal, passou a operar mentalmente como uma pessoa sindrômica, embora a doçura jamais tenha deixado sua personalidade.

“Espera aí”, digo ao médico. Precisava assimilar aquilo e pensar – não sei se quero este hospital, muito menos um cirurgião que não conheço.

Pra encurtar uma história longa, às 19hs daquele mesmo dia eu estava entrando na sala de cirurgia de um hospital onde me sentia seguro para ser operado por um velho amigo da família. Dentro de um problema, a melhor resolução possível. Minha última piada antes de apagar, lembro, foi “não vá tirar o apêndice errado”.

Muito bem.

O anestésico realmente pode ser uma droga fabulosamente agradável. Provavelmente a melhor que usei. Compreendi o vício de Michael Jackson. Não sei se já estava acordado antes sem ter memória disso, mas lembro tudo que aconteceu a partir de um certo momento. Isso inclui gente falando que eu não iria lembrar de nada daquilo, e uma enfermeira sugerindo que eu mudasse de profissão quando perguntara se minha voz voltaria ao normal.

Tentei reger a pequena orquestra que se postava de branco ali na minha frente e que se recusava tocar seus pequenos instrumentos metálicos. “Porquê vocês não estão tocando?”, perguntava. Tentei também negociar um pouco do anestésico com a enfermeira (isto ainda extremamente dopado, ok?). “Este não está disponível para levar para casa”, ela disse. “Só o Michael Jackson pode?”, perguntei. Meu espírito questionador e igualitário não mudara. A inconveniência também não. “Pois é, você vê que não deu muito certo”. Touché.

Tudo foi muito bem. É uma cirurgia pequena. Sobrevivi com o pênis intacto e a cabeça não exatamente boa, mas tão ruim quanto antes. E ainda tive um banzo legal, assistido por médicos.

No dia seguinte estava de alta. “Segunda-feira, passe no consultório”, disse o médico.

Muito bem.

Segunda-feira eu estava lá para uma consulta de rotina. Contar da recuperação até ali, saber em quanto tempo poderia voltar a fazer as coisas normalmente. Minha avó e minha irmã foram comigo.

“Talvez eu tenha que te operar de novo”, Médico disse.

Vó riu. Achou que era piada. Mas era sério. A apendicite é comumente causada por um pedaço de comida entalado no apêndice. O que está dentro fica preso. O órgão, então, faz força para se livrar e, não conseguindo, inflama. Mas não era o meu caso. Minha apendicite havia sido causada por um tumor, acabara de contar o patologista a ele por telefone. O tumor foi crescendo até que entupiu o apêndice.

“Pode ser malígno?”

“É improvável. Mas pode”

Eu perdera meu avô para um câncer havia 1 mês. Receber essa notícia foi… sei lá. Um choque, talvez.

A razão da operação que ele sugerira era que há uma área do intestino irrigada pelos mesmos vasos do apêndice. Células cancerosas, se as houvessem, poderiam ter escapado para alguma dessas partes. Mas eu ainda não sabia se era um câncer ou não, então só me cabia esperar.

Muito bem.

O processo de distribuir essa informação foi extremamente difícil. Primeiro por não tê-la completa. Segundo por que o pai-que-avisa-o-tio-que-avisa-a-tia-que-avisa-a-tia-avó acaba sendo um telefone sem-fio onde muita informação acaba sendo desencontrada ou mal interpretada. Por isso, abri no Facebook uma conversa com as minhas 20 ou 30 pessoas mais próximas, onde expliquei tudo diretamente.

Nesse momento, optei pelos fatos. “Vai dar tudo certo, você vai ver” não me interessavam, embora jamais tenha deixado de apreciar a intenção carinhosa de quem falava esse tipo de coisa. Apenas eu não levava a sério, afinal, não sabia se realmente daria tudo certo. Sim, pode dar tudo certo. Mas pode dar tudo errado. Ja vi dar tudo errado com tanta gente, porquê não comigo?

Na quinta-feira, Médico me liga.

Era um adenocarcinoma. Um tumor maligno.

Um câncer.

Muito bem.

Eu tivera um câncer.

Não acredito em justiça. Acredito em aleatoriedade. E mesmo pelo senso de justiça: meu avô, a melhor pessoa que conheci, teve câncer. Então eu também poderia ter. Assim, não senti raiva. Não está errado. Não é injusto. É aleatório. Eu nasci com essa predisposição e, provavelmente, contribuí para ela. Poderia ter sido o vizinho, o padeiro ou o dono da fábrica de portões. Fui eu. Random. Bolas de gude jogadas num chão liso.

Mesmo pensando dessa forma, a notícia é uma merda.

Muito bem.

Duas semanas se sucederam. Nós tínhamos que agir rápido, mas não havia a urgência da outra operação. A melhor alternativa era esperar um segundo resultado da biópsia, chamado “imuno histoquímico”, mais detalhado e preciso, mas também mais demorado. Médico foi viajar. Voltaria mais ou menos junto com o resultado, em 15 dias.

Esse tempo veio a calhar. Fui ouvir outras opiniões: um oncologista e dois cirurgiões em consultas, além de algumas pessoas próximas.

Diante da crise você se depara com a humanidade das pessoas. Quando pede uma consulta de um médico, geralmente não é fácil para o período em que você precisa, principalmente se não é paciente costumeiro. “A doutora só tem vaga no mês que vem”. Eu não poderia esperar isso. Mas quando você explica o que está acontecendo, muda-se o tom. “Ah, então venha que nós encaixamos”.

Veja: são pessoas que não te conhecem e controlam a agenda de cirurgiões oncológicos, habituadas com esse tipo de situação. Mas a compaixão é muito forte, talvez ainda mais do que a das pessoas que não convivem. Talvez nós sentíssemos pena. Eles, compaixão. Ou ao menos foi essa a minha impressão.

Uma outra coisa deliciosa que me aconteceu foi ver uma reaproximação do, digamos, círculo mais íntimo de familiares e amigos. São pessoas que eu sempre amara e que eu sei que sempre me amaram. Por isso, nunca ficara muito aflito em dizer isso. Mas diante do que aconteceu, nós passamos a lembrar de dizer “eu te amo”. Até porque parece que se perdeu a sensação de que sempre poderíamos deixar isso para outro dia.

E aí é até interessante, porque é obvio que a iminente possibilidade de morrer, ainda que remota, cerca todas as pessoas em todos os momentos. Mas passar de uma dor de barriga para um câncer em alguns dias te lembra dessa iminência com muito mais clareza.

O lado ruim é que também há as pessoas de quem você esperava tanto, mas se mostram desinteressadas. Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Nenhuma mensagem no Facebook. “Emir, tá tudo bem?” Nenhuma menção de amigo em comum. “Emir, falei com Amigo e ele não pôde vir, mas te mandou um abraço”. Nada.

Mas fique tranquilo, caro leitor. Não deve ter sido você.

Muito bem.

Dezenas de coisas foram consideradas durante esses 15 dias. Entendi esse câncer muito melhor a partir dessas três consultas. Também pesquisei, li, busquei opinião de amigos, enfim.

Questionei, obviamente, se todos esses médicos indicavam a cirurgia porque viviam disso. Tudo, afinal, indicava que as maiores chances eram de que já não houvesse células cancerosas no meu organismo. Mas compreendi que, de acordo com a literatura, que analisava praticamente todos os casos semelhantes que aconteceram no mundo inteiro por muito tempo, os que tiveram mais sucesso foram os que fizeram essa operação.

Aí então pensei em pôquer. As chances estatísticas de fazer uma trinca são maiores se você tem um par na mão. A chance estatística de eu não ter um câncer em outra área está no caso de eu retirar a alça direita do intestino grosso e mais um pedaço do fino.

Você vai me perguntar: por que não fazer todos os exames e ver se há um câncer em outro lugar antes de arrancar isso? Bem, eu fiz essa pergunta. É que os exames não encontram células. Meus exames não encontraram nenhum tumor. Isso não quer dizer que não pudesse haver células.

Encurtando mais uma vez uma historia longa: ouvi muita gente, incluindo Pai, Mãe, e obviamente meu cachorro Napoleão (que foi veementemente contra), e optei pela cirurgia – o tratamento de um câncer instalado, sei bem através da experiência com meu avô, é muito pior do que uma operação.

Escolhi outro cirurgião. Minha pesquisa e algumas experiências familiares apontaram que seria melhor alguém com distanciamento emocional, o que meu médico não tinha (não sei se ele poderia estar distante na hora da operação, mas ele não era distante, e isso me preocupou).

“Não fico melindrado, Emir. Mas faça a cirurgia. É muito importante”.

Muito bem. Dez dias depois dessa resolução eu estava no hospital pronto para uma nova operação. Agora já sem alguns medos, mas com outros – como será viver com um metro de intestino a menos era um deles (a resposta, já adianto: nenhuma diferença).

Eu sempre estive ciente de que esta cirurgia, que já não era simples como a primeira, poderia me matar ali mesmo. Inspirado no meu avô, um bravo diante da morte, resolvi encarar essa chance.

Olhei a morte nos olhos. Tive medo. Seus grandes olhos foscos são aterrorizantes. Mas não desviei. Olhei até ficar em paz com ela. “Não te quero. Mas estou pronto para ti”.

Não confunda isso, no entanto, com ato de braveza que possa soar. Sim, requer coragem para fazer isso genuinamente. Mas eu realmente estava pronto, não era mentira. Foi mais fácil do que teria sido encarar os olhos vagos e boiantes de uma condição de vida muito mais dura do que sou capaz de suportar. Essa, eu não consegui encarar. Os olhos da Má Condição me provocavam náuseas instantâneas. “Para você não estou pronto, e nem sei se um dia estarei”.

Muito bem.

A cirurgia foi um sucesso. Estou aqui lhe escrevendo, afinal.

Minha uma semana de hospital teve dias bons. Mas também teve dias de terror. Sim, terror. Foram os piores momentos de todo o processo, alguns dos piores da minha vida. O stress é muito grande, as drogas são muito pesadas, e combinadas, são muito fortes. O fato de serem legais é irrelevante.

Presumo que o hospital, de especialidade oncológica, tenha um índice alto de tentativa de fuga ou mesmo de suicídio. As janelas não abrem mais que 4 ou 5 dedos; você não pode deixar o andar onde está, muito menos ir tomar um sol lá embaixo, ainda que dentro do próprio prédio.

Desta forma me senti preso. E preso com um corte de cima a baixo do abdomen, um intestino costurado, uma sonda que mantinha uma mangueira da grossura do meu mindinho enfiada dentro da barriga. E também, por momentos, com mal-estar fortíssimo – enjôo severo, disenteria constante, vontade de enfiar o dedo no olho e rodar. Esse tipo de coisa.

Muito bem.

Uma semana e algumas horas de hospital depois, estou de volta em casa. Hoje, faz uns 5 dias da minha alta. Foram dias em que melhorei várias vezes mais do que na uma semana de hospital. Claro que é natural – lá, eu estava no momento imediatamente posterior da cirurgia. Agora, já parto de um momento muito melhor. Mesmo assim, me parece que minha casa tem feito muito bem, de modo geral. Ou ao menos, mentalmente – e esse sempre foi meu ponto fraco.

Há um longo caminho a se percorrer, embora as pessoas sempre digam que “já está acabando”, ou “já passou o pior”. Novamente, aprecio a intenção da fala. Fico com a doçura de quem está preocupado em alentar. Mas não levo a sério. Não posso levar. Seria muito duro acreditar nisso e depois não ser assim. Os fatos são melhores: pode ser que o pior tenha passado; também pode ser que não.

Vou acreditar que já está acabando quando eu puder ver um lindo pôr do sol no Parque do Ibirapuera e depois, à noite, fazer um show. E isso ainda está longe, bastante longe. O que não quer dizer que não possa ir, de vagar, fazendo coisas novas.

Na sexta-feira, tirei os pontos e recebi o resultado da biopsia do pedaço de intestino retirado: limpo. Não foi encontrada nenhuma célula de câncer, segundo Novo Médico. Isso faz com que as chances de que não haja em outras partes do corpo seja altíssima. Não total, mas próxima do total. Vou ter que me manter fazendo exames de tempo em tempo por alguns anos.

Muito bem.

Até este momento, foram mais de 50 dias de uma madrugada que começou com uma dor de barriga. Para mim, é uma madrugada só, porque desde então eu não pude jamais descansar por completo. Não durmo de lado desde a primeira cirurgia. Eu que sempre gostei de dormir de bruços, porque morro de calor na bunda. Também senti, por todos esses dias, dores severas, provenientes de cortes ou mesmo de reações do corpo a toda essa agressão, e isso cerceia o descanso.

Eu não sei exatamente quanto tempo essa madrugada vai ter. “Logo passa”, você tenderá a dizer. Aprecio a intenção, caro leitor, e fique à vontade se quiser seguir em frente com as palavras. Mas não posso levar a sério. Hoje, parece que vai passar em um momento relativamente breve. Alguns poucos meses, talvez. Mas o certo, o absolutamente certo, é que vá passar… bem, quando passar.

O que não é um problema. Aceitar isso talvez seja uma solução. Mas é uma solução para mim, talvez não seja para todos. Há quem prefira ser entorpecido de esperança.

O que eu aprendi com tudo isso?

Bem… não diria que aprendi nada. Aprender significaria ter descoberto uma resolução definitiva. Eu assimilei dezenas de coisas que me fazem sentido hoje e podem deixar de fazer amanhã.

Como compositor, eu nunca gostei daquele tipo de música à Raul Seixas que diz coisas como “eu achava isso, mas aprendi aquilo”. Jamais usei nem tampouco respeitei esse artifício, porque o cara que presume que “sabe” ou “descobriu” aquilo hoje, embora seja humilde o bastante para admitir o erro inicial, não é para admitir o possível erro que ele pode estar cometendo agora mesmo, mesmo se sabendo um errante comprovado. Nada impede, em tese, que amanhã ele escreva “eu achava aquilo e hoje eu sei aquilo outro”, numa sucessão virtualmente infinita.

Assim, sei o que eu quero hoje. Sei que quero ficar na minha casa. Sei que quero comer a comida da Vó. Sei que o simples fato de poder fechar a minha porta e dormir uma noite sozinho é uma dádiva. Isso, hoje. Amanhã, não sei.

E talvez seja essa a grande frase deste meu momento. Amanhã, não sei. “Está vivo, Ruivo?” Estou, caro leitor. Hoje. Amanhã, não sei.

Ah, sim, mais uma coisa: concluí com muito mais força do que jamais tivera que tenho que pensar. Tudo que aconteceu de melhor nesse processo adveio de “pensar”, e não “deixar”. Escolher o hospital; escolher entre fazer a cirurgia ou não; escolher tomar ou não todos aqueles remédios que, no piloto automático, iam me entupindo (em um certo momento, eu parei com quase metade deles no hospital, por opção – e isso quase sempre me fez bem).

Você nunca vai ter controle total de nada. Mas, como no pôker, você pode ter as melhores chances de fazer o melhor.

É muito importante pensar.

Muito bem.