A maior derrota dos Jogos do Rio

Atualizado em 3 de agosto de 2016 às 16:58
Baía da Guanabara
Baía da Guanabara

Publicado na DW.

 

Alex Sandro dos Santos está de pé sobre um velho cais de madeira que leva até os barcos dos pescadores, a partir do bairro de Tubiacanga, na Ilha do Governador, na zona norte do Rio de Janeiro. Com 48 anos de idade, ele pesca na Baía de Guanabara desde que tinha dez anos.

“Aqui ainda tem uns 20 mil pescadores, cada um com três ou quatro filhos para criar. Mas com a queda da população de peixes, nem todos conseguem viver da pesca. Muitos trabalham como garçom para ganhar um extra”, queixa-se Alex Sandro, que complementa o orçamento construindo caixas de madeira.

O motivo para o desaparecimento dos peixes fica claro assim que se dá uns poucos passos pelo cais: o cheiro é de fezes e lixo, na água há garrafas plásticas, sapatos, até móveis inteiros flutuando; o lodo nas margens é uma massa mal-cheirosa e imunda.

Nessa área próxima ao Aeroporto Internacional do Galeão, a vista para o mar é dominada pelas chaminés das refinarias de petróleo e pelo mar de casas do Rio, a cidade de 6 milhões de habitantes que lança seus esgotos não tratados na Baía de Guanabara, como se fosse a coisa mais normal do mundo: 18 mil litros de água por segundo.

A indústria pesada igualmente deposita há décadas os seus dejetos altamente tóxicos na baía oceânica. A 32 metros de profundidade, o lodo do fundo está fortemente contaminado com metais pesados, e a água pulula de bactérias multirresistentes.

Além disso, em janeiro de 2000 a ruptura de uma tubulação resultou no vazamento de mais de 1 milhão de litros de petróleo para dentro da baía e para a reserva ecológica dos manguezais costeiros. Muitos moradores estão esperando até hoje para receber as indenizações devidas da semiestatal Petrobras.

Ignorando as bactérias

Enfim: a baía – cujo belo nome em tupi significa “mar do seio”, provavelmente devido à antiga abundância de peixes – serve ao Rio de Janeiro, ao mesmo tempo, como cloaca, lixão e depósito para restos de óleo mineral. Fato que não impediu o Comitê Olímpico Internacional (COI) de escolhê-la como local para as competições de vela dos Jogos Olímpicos de verão.

Depois participar de um teste de regata em 2015, o velejador alemão Erik Heil contraiu infecções nas pernas e quadris, que só cederam após o retorno a Berlim, com a ministração de um antibiótico de amplo espectro.

Diversos atletas dizem ter receio de entrar na Baía de Guanabara, e pretendem evitar todo contato da água com a pele. O alemão Heiko Kröger, medalha ouro de vela nos Paraolímpicos de 2000, escreveu para Thomas Bach, presidente do COI: “Se eu fosse o senhor, não conseguiria mais dormir de noite.”

Especialistas confirmam que as bactérias das águas do Rio podem desencadear doenças bem piores que a de Erik Heil. “Os esportistas devem, de todo modo, se vacinar contra hepatite A, antes de começar no Rio”, aconselha o biólogo marinho Mario Moscatelli. Com a densidade bacteriológica que ele constatou, tampouco estão descartadas doenças como a meningite.

Medidas vãs de saneamento

Fundador do Movimento Baía Viva, o ecologista Sérgio Ricardo se ocupa há anos do escândalo ecológico da enseada carioca. “Nós chamamos isso de ‘o milagre da Guanabara’: aqui se encontram todas as espécies, fora baleias.” De fato, se ainda há alguma vida no local, é graças a um pequeno afluxo de água fresca do Oceano Atlântico. Por outro lado, esgotos e cerca de 100 toneladas diárias de lixo continuam sistematicamente destruindo vidas.

Ele entra com o barco na baía, para mostrar as dimensões do desastre ecológico, provando como fracassaram todos os diversos esforços para sanear o corpo d’água – os quais COI gosta muito de mencionar, sempre que há críticas à escolha do Rio como cidade-sede.

Entre 1994 e 2006, o estado do Rio de Janeiro investiu o equivalente a mais de 1 bilhão de euros na construção de estações de tratamento de água, com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Agência para Cooperação Internacional, do Japão.

O problema é que até hoje a maioria das tubulações necessárias não foi instalada, e a maior parte do esgoto continua caindo diretamente no mar, sem qualquer tratamento. Enquanto isso, as seis estações construídas vão se arruinando. “O programa quase não teve efeito”, acusa Sérgio Ricardo. “Em vez disso, o governo aposta em medidas cosméticas: por exemplo, barcos para pescar o lixo da água.”

Extração de petróleo, outro vilão

Em 2013 foi iniciado um segundo projeto de saneamento, com custo superior a 200 milhões de euros. No entanto, também aqui o vazamento de verbas foi grande, como ao se conectarem várias casas ao sistema de canalização, sem que este desembocasse na estação de tratamento d’água. Havia diversas instituições envolvidas, em nível municipal, estadual e federal, e muito dinheiro se perdeu com a burocracia e corrupção.

Assim como outros peritos, Sérgio Ricardo tem certeza que o saneamento da Baía de Guanabara é um projeto de longo prazo, sendo necessários, no mínimo, 20 anos até se começarem a ver os primeiros efeitos. Já a “limpeza expressa” para as Olimpíadas não serviu para nada.

É preciso construir canais e lagunas e tem que ser eliminado o aterro sanitário desativado nas proximidades das águas, reivindica o ecologista: “Combinado com o lixo que é lançado do Rio, o aterro é o coquetel molotov da Baía.”

Para culminar, não se pode excluir que nos próximos anos a indústria petroleira continue a perfurar no local: a cerca de 7 mil metros de profundidade ainda se encontram grandes jazidas, e a economia brasileira segue dependente do combustível fóssil. Aí é questionável se a técnica de filtragem bastará para compensar a utilização industrial intensiva.

Peixe continua chegando às mesas

A conclusão do pescador Alex Sandro dos Santos é desoladora: “A gente tinha a esperança de que alguma coisa fosse melhorar com as Olimpíadas, mas nada aconteceu: a esperança é zero.” Por isso é importante seus colegas de profissão que ainda restam tomarem o destino nas próprias mãos.

Isso não o impediu de participar da fundação do Observatório Pesqueiro da Baía de Guanabara, que aponta irregularidades na área e promove programas alternativos para os pescadores – como, por exemplo, a criação de peixes em antigos tanques de petróleo.

Apesar do lixo, óleo e metais pesados, Santos não esconde seu orgulho e determinação ao afirmar que “o peixe da Baía continua chegando às mesas, apesar dos debates”. Ele mesmo ainda não ficou doente por isso: “Tenho uma saúde de aço”, assegura, sorrindo.

E, ao se despedir, ainda dá um dica sobre a melhor forma de degustar o peixe da Guanabara: acompanhado por um chope bem gelado.