A maioria dos usuários de crack está em casa, não nas ruas

Atualizado em 29 de janeiro de 2013 às 22:26

Com o programa “Crack, É Possível Vencer”, o governo mira só a ponta do iceberg

 

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Os 4 bilhões de reais que o Ministério da Saúde irá injetar até 2014 no programa “Crack, É Possível Vencer”, após décadas e décadas de um comportamento mão-de-vaca e de total desleixo na implantação de uma rede de assistência digna, não são coincidência. Até a Copa do Mundo, cidades como São Paulo e Rio precisam estar limpinhas. O nome disso é faxina. Na Alemanha de Menguele se chamava selekzion.

Não serei exagerado na comparação. Precisamos apenas convir que o governo mira só a ponta do iceberg. Aquelas pessoas jogadas na rua são a parcela visível, e menor, do problema. Sem uma rede pública de atendimento e com clínicas particulares que cobram diárias de hotel 6 estrelas, não só a camada mais pobre é afetada. A classe média também é alcançada. A grande maioria dos dependentes químicos não está naquela situação terminal que vemos na TV. Estão ainda em meio às suas famílias, causando estragos, prejuízos, bancarrotas. Adoecendo todos em volta. Sem condições financeiras de arcar com os tratamentos e internações, esses lares vão sobrevivendo à custa de muito sofrimento. Uma higiene radical, portanto, pouco ou nada resolveria. As ações precisam ser, além de estruturadas, contínuas. De que adianta lançar programa após programa sem dar sequência a nenhum nem outro?

Com este Programa de Internação Compulsória iniciado nesta semana, devemos estar na operação faxina número 20. Resolverá? Desta vez haverá juiz, promotor e até integrante da OAB para autenticar a necessidade de internação daquele que fora abandonado à própria sorte até então. Ótimo, algo precisa mesmo ser feito, mas que tal combater a causa? Por que não enfrentar o tráfico com mais veemência primeiro? Por que não dar proteção aos cidadãos mais vulneráveis ANTES de se tornarem futuros dependentes e/ou traficantes?

Os CAPs (Centros de Atenção Psicossocial para álcool e drogas) foram criados por força de lei em 2002. São raríssimos de se encontrar hoje em dia. No bairro onde moro existe um. Ele fecha todos os dias às 18:00 e também permanece fechado aos sábados e domingos. Enquanto está em funcionamento, a entrada é um lugar limpo e as poucas pessoas em busca de ajuda que verifico são nitidamente dependentes do álcool. Quando fechado, a frente do local vira ponto de consumo de drogas, especialmente o crack. Pela manhã cedinho, quando vou à padaria, a calçada não diverge do padrão cracolândia. Cobertores, papelões, papelotes, fezes. Quando passo novamente ali por volta da hora do almoço, a cena é a primeira descrita. Foi tudo limpo, apagado. Por que não há plantão ali? Por que nenhum médico ou autoridade, imbuído de seu espírito altruísta, fica ali durante a noite para conversar, orientar e atender os viciados? Todos os dias a mesma farsa: uma faxina apaga os vestígios da realidade.

Usarei mais um exemplo próximo a mim. Muito perto do local acima descrito, ocupado ora pelo CAPs ora pelos cracks, há um ponto de ônibus. Durante meses, um garoto de aproximadamente 8 anos e sua irmãzinha de 5 ou 6 eram diariamente abandonados ali para passarem o dia. Tinham sempre uma sacolinha plástica à mão, dessas de supermercado, com um pacote de biscoito e outro de salgadinhos e a instrução de que não saíssem dali. Ver todo dia aquele quadro mórbido abalava-me profundamente. Abordei-os. Não quiseram revelar muito, mas estava na cara que eram deixados ali pelo pai ou pela mãe por não terem onde ficar durante o dia. Alertei dois guardas que faziam ponto na frente da mesma padaria de minhas manhãs que alegaram nada poder fazer. Ou eu fazia uma denúncia formal ou nada feito. Correto, os guardas obedeceram ao protocolo, mas proatividade zero. As crianças sumiram. Espero que não estejam jogadas em outras calçadas, dessa vez pitando cachimbos em vez de comendo bolachinhas.