A história da interdição de João Gilberto por sua filha Bebel por incapacidade de gerir seu patrimônio tem o dedo do banqueiro Daniel Dantas, do Oppurtunity. Mais que o dedo, na verdade.
Segundo o processo, João estava em condição de “quase miserabilidade”.
Endividado, teria assinado empréstimo de R$ 10 milhões com o banco Opportunity, em abril de 2013.
Como garantia, o banco ficou com 60% dos direitos autorais dos quatro primeiros discos de João.
Em 2016, a revista Piauí falou dessa parceria ruinosa entre o pai da bossa nova e o banqueiro:
Aos acordes da flauta de Nicolino Copia, o Copinha, segue-se a batida do violão de João Gilberto, acompanhada de sua voz: Vai, minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser… Quando a canção Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, gravada na velha fita de acetato de celulose, rodou no gravador analógico do estúdio de masterização, o engenheiro de som André Dias e Daniel Jobim, neto de Tom, choraram. Aquele som límpido e cristalino era a reprodução original da canção gravada por João Gilberto em 1958, ainda em 78 rotações, que fora incorporada ao disco Chega de Saudade, lançado no ano seguinte pela gravadora Odeon.
Além da canção que dava nome ao vinil, eles ouviriam mais onze, entre elas Bim Bom, Desafinado, Oba-La-Lá, e Lobo Bobo, que integravam o primeiro LP de bossa nova, nome cunhado para as composições de Tom, Vinicius, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli e outros jovens artistas do final da década de 50, que passaram a ser executadas na voz e no violão de João Gilberto. Naquela manhã de meados de 2014, o som que brotava daquela fita remetia Daniel Jobim e André Dias, o dono do estúdio diminuto mas bem equipado, na Barra da Tijuca, ao calorento janeiro de 1959, quando o disco foi produzido e nenhum dos dois havia nascido. O que eles ouviam era exatamente o som saído do estúdio da Odeon 55 anos antes.
Ao longo do dia, a dupla ainda ouviria mais duas fitas de acetato com canções de outros dois discos gravados pelo músico baiano: O Amor, o Sorriso e a Flor, lançado em 1960, e João Gilberto, em 1961. Foram as últimas gravações que o artista fez para a Odeon. Em 1963, ele romperia o contrato com a gravadora. Depois disso, iniciou-se uma briga que se estende até hoje, mesmo a Odeon tendo sido comprada pela EMI, que, por sua vez, foi incorporada pela Universal. Enquanto as partes não chegam a um acordo, nenhum dos três discos pôde, até hoje, ser relançado.
Mais do que propiciar uma experiência sonora, aquela audição matinal fora programada com o objetivo de comprovar a originalidade das três fitas matrizes que, no jargão do mercado fonográfico, se chamam másteres – são elas que captam a gravação feita em estúdio, tal e qual. Depois, elas recebem a interferência de engenheiros de som, que podem modificar graves e agudos, entre outros, num processo conhecido por masterização. Feita a masterização, o disco é produzido e lançado. A masterização é uma espécie de Photoshop do que foi gravado na fita matriz. Uma vez na praça, o disco pode sofrer novas alterações em suas reedições, com as interferências que as gravadoras julgarem necessárias para melhorar a qualidade do som ou tornar o produto mais vendável, num processo conhecido por remasterização.
Ocorre que, muitas vezes, essa interferência pode descaracterizar o trabalho original. E foi disso que João Gilberto sempre se queixou. Para ele, os tratamentos posteriores que esses três discos receberam foram desastrosos, sem exceção. Para poder ter o controle de futuros discos, o artista solicitou à Justiça o direito de reaver as fitas matrizes, o que enfim lhe foi concedido depois de muita briga. Não ganhou, porém, o direito de posse, que continuou sendo da gravadora. Ele apenas pode ter contato com a fita, uma espécie de empréstimo. A defesa de João Gilberto, ao receber o material da EMI, queria ter a certeza de que eram realmente as fitas originais. Foi então que André Dias foi chamado a atuar.
André Dias é um homem de 40 anos, sorridente, com cabelos que lembram os dos músicos dos Novos Baianos, nos idos dos anos 70. Já recebeu várias indicações ao Grammy – o Oscar da música – por seus trabalhos de masterização.
Certo dia de 2013, o engenheiro estava no estúdio quando um executivo do Banco Opportunity, do Rio de Janeiro, ligou, a voz denotando urgência. Acostumado a lidar com a indústria fonográfica e com músicos, Dias estranhou a chamada, conforme me disse em novembro passado, quando conversamos. O interlocutor perguntou se ele poderia comparecer o mais breve possível à sede do banco, no Centro, para tratar de um assunto sigiloso e importantíssimo. Seu nome havia sido indicado pelo produtor musical João Marcelo de Oliveira, filho de João Gilberto e Astrud Gilberto, com quem o cantor foi casado. Dias não pensou duas vezes.
O Opportunity pertence ao economista e banqueiro Daniel Dantas, que esteve no foco da história recente do país por seus embates com o governo do PT em torno da posse de empresas de telecomunicações privatizadas. Investigado pela Polícia Federal, ele chegou a ser preso e depois liberado por falta de provas.
Chegando ao banco, Dias foi encaminhado a uma sala com vista para a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, onde um grupo de funcionários o aguardava ao redor de uma comprida mesa de reuniões. “Eles foram direto ao assunto. Queriam que eu ouvisse as másteres de três discos gravados por João Gilberto para saber se eram os originais e também que eu atestasse as condições das fitas”, contou.
Para surpresa do engenheiro, o Opportunity tomara para si a causa de João Gilberto que se arrastava na Justiça desde 1997. O cantor decidira processar a EMI com o intuito de receber os royalties de seus discos, que jamais lhe teriam sido pagos. A despeito do distrato ocorrido em 1964, a EMI-Odeon não só teria continuado a explorar comercialmente a obra, como adulterara grande parte das gravações – através de sucessivas remasterizações para lançamento de discos em estéreo –, sem a concordância de João Gilberto. Um LP, lançado em 1988 para comemorar os 75 anos da EMI-Odeon, estava também no pacote da briga: o álbum O Mito, com canções dos três discos que o artista gravara entre 1959 e 1961, mas com alterações que feriam os ouvidos perfeccionistas do músico.
Não bastasse, as faixas não haviam sido reproduzidas na ordem original, em total desconsideração ao trabalho de escolha da sequência ideal pelo autor. Era como se a gravadora decidisse juntar, aleatoriamente, músicas de The Dark Side of Moon, o lendário álbum do grupo inglês Pink Floyd, com faixas de outros discos deles. Enfim, o artista baiano ainda exigia ser ressarcido pelo uso de uma de suas canções para uma campanha da indústria de cosméticos O Boticário – a gravadora liberara a trilha sem consultá-lo. E, claro, sem tampouco remunerá-lo.
O processo patinava até que, em 2013, Cláudia Faissol decidiu se envolver no assunto. Filha de um famoso dentista carioca, era casada com Eduardo Zaide, dono de uma rede de lojas de roupas masculinas, quando, no final de 2003, resolveu acompanhar a turnê de João Gilberto ao Japão para rodar um documentário. O filme nunca saiu, mas ela engravidou do artista.
Zaide pensava que o bebê, uma menina nascida nove meses depois da turnê, fosse sua filha biológica, até que sua mulher, por ocasião do segundo aniversário da criança, veio a público revelar que o verdadeiro pai era o artista baiano. O casamento se desfez. A socialite decidiu tomar as rédeas das finanças do músico e, para tanto, embrenhou-se no cipoal da dinheirama da EMI, a que ele alegava ter direito.
Cláudia Faissol procurou Carlos Rodenburg, executivo do Opportunity e ex-cunhado de Dantas (fora casado com uma irmã dele, Verônica). Carlinhos, como é conhecido no mercado, é sobrinho de João Gilberto. Ele ouviu os argumentos de Faissol e marcou uma reunião com Dantas e uma equipe de advogados do banco. Dantas, também baiano, a princípio não se interessou pelo assunto – aquela briga não fazia muito sentido para os negócios da instituição, pensava. Mas seus advogados o aconselharam a prestar atenção: a causa poderia inaugurar uma nova área de interesse do Opportunity.
Daniel Pedreira é um jovem executivo, com formação em direito e administração. No começo de novembro, num encontro na sede do banco, perguntei-lhe qual o interesse do Opportunity em se envolver na disputa (afora o fato de que confusões jurídicas parecem atrair entusiasticamente o boss). Havia algum tempo, disse Pedreira, que os advogados vinham estudando a possibilidade de criar uma área chamada Litigation Finance – ou Litígio Financeiro, muito comum nos Estados Unidos. O negócio se resume ao seguinte: o banco adianta ao litigante uma fração do ressarcimento reivindicado por ele – que, em troca, abre mão de receber o grosso das indenizações futuras no caso de ganho nos tribunais. Nos Estados Unidos, a prática funciona porque a Justiça é célere e as partes não podem procrastinar os processos com recursos infindáveis, como ocorre no Brasil. Lá, a parte que insiste em recorrer da decisão judicial corre o risco de pagar multas exorbitantes.
O Opportunity, porém, achou que a causa de João Gilberto valia a pena. O banco propôs adiantar 10 milhões de reais ao artista, que se comprometeu a repassar à instituição 60% do valor total da indenização que a EMI venha a pagar ao final do processo. Se o banco perder a disputa, o dinheiro adiantado fica com João Gilberto.
A partir daí, no entanto, o caso ganhou outra dimensão. Antes da entrada do Opportunity, a indenização era estimada em 2 milhões de reais – agora a briga envolve um valor cem vezes maior. Jogo pesado. O banco substituiu os antigos advogados por uma equipe de jovens aguerridos – entre eles, João Mendes de Oliveira Castro, que já havia trabalhado lá, mas saiu para montar um escritório de advocacia com mais dois colegas. Ali, mergulhou de cabeça no caso.
De fala rápida e articulada, Castro explicou o processo como se estivesse diante do juiz. Não só a EMI havia explorado várias gravações do artista, como não vem lhe pagando royalties desde 1964, como consta no processo de quase vinte volumes. Além disso, também seria preciso levar em conta o caso da faixa cedida à empresa de cosméticos. Para calcular o valor devido, os advogados contrataram um perito, que apresentou uma conta salgada à gravadora: ao artista caberiam cerca de 200 milhões de reais atrasados.
Mas o Opportunity mirava muito além da indenização: em comum acordo com o artista, a instituição também abocanhará a maior parte dos royalties do que vier a ser comercializado com as gravações. “Eu estava no avião vindo de Nova York para o Rio e ouvi uma música de João Gilberto no alto-falante”, contou Daniel Pedreira. “O artista não ganha nada com isso. É o fim.” E completou: “Imagina o quanto não ganharemos de royalties daqui para a frente com a regravação daqueles três discos. Toda reprodução, seja em CDs ou outros meios de difusão audiovisual, como internet, que é o nosso foco, terá de pagar direitos ao artista e ao banco.”
Para fazer essa regravação, no entanto, era preciso ter acesso às fitas másteres, das quais a gravadora sustentava ser proprietária. Mal comparando, é o mesmo que ocorre quando um artista vende um quadro a uma galeria de arte: a obra passa a pertencer ao comprador. O Opportunity contratou os serviços de um especialista em direitos autorais, o advogado Bruno Levick. Enfronhado no assunto, ele defende que, ainda que as másteres possam pertencer à gravadora, os direitos de uso seriam do artista. Como no caso do quadro, toda vez que a obra fosse publicada, estampada em livros ou em peças comerciais, o artista teria direito a autorizar seu uso e também a receber royalties sobre a imagem comercializada.
Aavaliação da autenticidade das fitas exigiu de André Dias um trabalho de formiguinha. Ao lado de Daniel Jobim, testemunha de João Gilberto, e de mais um oficial de Justiça, ele passou 22 horas no estúdio. Com o estado das fitas debilitado devido à antiguidade da gravação, qualquer erro no processo de digitalização poderia pôr tudo a perder. Depois, o engenheiro investigou se o material que lhe fora entregue era compatível ao usado à época. Na presença da testemunha, Dias digitalizou as gravações. Era preciso atuar rapidamente: “Não sei quanto mais tempo elas aguentam. O material é muito frágil. Se eu não tivesse cuidado, poderia acontecer de elas romperem e nós nunca mais ouviríamos aquelas canções na sua forma original”, explicou.
Confirmada a autenticidade do material, Dias, a pedido do banco e do artista, iniciou um trabalho de remasterização que levou mais de seis meses para ser concluído. O engenheiro limpou, eliminou os chiados, tornou imperceptíveis os defeitos sonoros provocados pelo desgaste. A ideia do Opportunity era relançar aquelas gravações em outros meios audiovisuais, além do vinil, e colocá-las no mercado assim que o trabalho estivesse concluído, o que ocorreu no final de 2014. Mas então os executivos esbarraram em um problema com que até então não contavam: as idiossincrasias de João Gilberto.
Quando o trabalho ficou pronto, enviaram-no ao artista. Para que ele pudesse ouvir com calma, o Opportunity alugou uma cobertura no Leblon, na rua Aperana, onde instalou um estúdio capaz de reproduzir as gravações como no estúdio de Dias.
João Gilberto escutou por vários dias, mas ficou em dúvida. Exigiu que o banco trouxesse de Los Angeles o produtor musical Moogie Canazio, para avaliar o resultado. Como o artista quase não fala com ninguém, suas exigências eram transmitidas ao banco e ao engenheiro por Cláudia Faissol e pelo filho João Marcelo, algumas vezes também por meio de Bebel Gilberto, filha do artista com a cantora Miúcha. Os contratos de cessão dos direitos, por exemplo, tinham que ser passados por debaixo da porta da casa do músico. Uma vez ele concordou em abrir a porta para o funcionário do cartório. Encantou-se com o sujeito e ficou algumas horas tocando violão para ele, para desespero do pessoal do banco – a demora foi entendida como um sinal de que João Gilberto havia desistido da operação.
Moogie Canazio, amigo do cantor há anos, havia produzido um dos seus discos, João, Voz e Violão, lançado pela Universal. A amizade começou quando o produtor se recusou a referendar a gravação de um disco ao vivo, num show em São Paulo – comungava com o artista a opinião de que a acústica do local era ruim e o disco ficaria prejudicado. João viu nele um aliado e ali foi selada uma relação de confiança.
Canazio é um sujeito alegre e expansivo. Durante uma conversa em novembro passado, por telefone, enquanto ele estava a caminho de um estúdio, em Los Angeles, contou, alternando risadas com momentos de consternação, como tudo se deu. Viera ao Rio e se instalara no apartamento que o banco alugara para João Gilberto. Tomavam café, almoçavam e jantavam juntos. Ali ficaram durante dias ouvindo o resultado do trabalho do engenheiro.
A digitalização procurou manter as características das gravações no estúdio da Odeon – as mudanças operadas por André Dias são imperceptíveis aos ouvidos comuns. Tem-se a impressão, ao escutar as gravações remasterizadas e digitalizadas, de que estão mais límpidas, qual um vidro do qual se retirou uma película. Dias costuma dizer que o que ele fez foi abrir as cortinas e remover o embaçado para que as músicas pudessem ser desfrutadas em sua encarnação original.
Após um período exaustivo de audição, Canazio deu seu parecer: o trabalho era perfeito, ele não tinha nenhuma objeção. Insistiu com João Gilberto que ninguém conseguiria fazer algo superior. O baiano, no entanto, não ficou convencido: exigiu que as fitas fossem avaliadas por outro profissional de sua confiança, Shigeki Miyata, que havia produzido o álbum In Tokyo, que João Gilberto gravou no Japão em 2003. O Opportunity entrou em contato com ele e pediu que Dias lhe enviasse os arquivos.
Miyata ouviu as gravações e também as aprovou. Disse aos executivos do banco que não tinha nenhum reparo a fazer. Ainda assim, o cantor seguiu inflexível. Até hoje não deu sua aprovação ao trabalho feito por Dias e elogiado por todos que puderam ouvi-lo. Os planos do banco de negociar os direitos dos três discos remasterizados precisaram ser adiados. A história se arrasta há mais de um ano.
(…)
Apesar do folclore alimentado há décadas, pessoas que se relacionam com João Gilberto sustentam que o trato com o público e com empresários de casas de show, desde sempre conflituoso, tornou-se insuportável desde que Cláudia Faissol entrou na vida do artista.
Até os 80 anos de João Gilberto – hoje com 84 –, seus interesses empresariais estiveram sob os cuidados do amigo Otávio Terceiro, quase da mesma idade que o músico baiano. Em 2011, Faissol escanteou Terceiro e montou uma megaturnê em cinco capitais brasileiras, associando-se a uma dupla de empresários baianos – Maurício Pessoa e Antonio Barreto Junior – responsável por organizar Carnavais em Salvador.
Iniciaram-se os contatos com casas de espetáculos. Os produtores, animados com a perspectiva de ganhar expressão nacional, receberam adiantado o dinheiro das bilheterias e o repassaram a João Gilberto. Gastaram mais de 1 milhão de reais com o artista, que chegou a pleitear um jatinho, exigência que o mercado fonográfico creditou a Faissol. Às vésperas da turnê, o cantor alegou problemas de saúde e cancelou os eventos. Mas não devolveu o dinheiro. Os baianos praticamente quebraram. A Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo, tenta, até hoje, reaver os 570 mil reais de bilheteria antecipados ao músico. A briga está na Justiça. Nem Faissol nem o cantor quiseram falar à reportagem.
Numa tarde de novembro passado, Daniel Dantas entrou intempestivamente na sala de reuniões do Opportunity onde eu conversava com os advogados do banco. Empolgado com a parceria, explicou a seu modo as mutilações na obra de João Gilberto. “O que as gravadoras faziam era pegar os discos e fazer interferências absurdas. Era como se o dono de uma tela de Leonardo da Vinci decidisse pintar um presunto na Santa Ceia”, exemplificou. “Agora, se alguém tiver que colocar o presunto, será o próprio João Gilberto.” E continuou, animado com a própria comparação: “Imagine o luxo. É como se Leonardo da Vinci pudesse restaurar a própria obra.” Em seguida, voltou-se para os advogados e reclamou, meio sério, meio rindo: “Ele não pode demorar indefinidamente para aprovar essa remasterização. Não dá para esperar muito mais.”
O Opportunity já cortou o aluguel da cobertura no Leblon. João Gilberto mudou-se em outubro do ano passado para uma suíte no Copacabana Palace, às suas expensas. E ainda não recebeu do banco a segunda metade dos 10 milhões de reais, a ser liberada só quando ele aprovar o trabalho.
Enquanto espera, o banco aproveita o tempo para fazer contato com empresas. Daniel Pedreira, o jovem executivo do Opportunity, explicou que estão estudando todas as formas de melhor aproveitamento das músicas. “Venda de discos é o que menos nos preocupa”, disse ele. “Discos não vendem mais. Estamos de olho no mercado publicitário, no uso da música de João Gilberto para desenvolver alguma marca e também em shows.” João Gilberto, ele aposta, não vai mais demorar muito tempo para liberar as gravações. “É do interesse dele também ver esse negócio resolvido.”
Quando teve que assinar o contrato com o banco, João Gilberto exigiu que lhe enviassem doze cópias. Só liberou os documentos após considerar que a assinatura ficara impecável.
O engenheiro André Dias não esconde sua aflição, mas busca se conformar invocando o perfeccionismo insaciável do artista. Argumenta que João Gilberto mantém a mesma atitude que tinha desde os anos 50. Em seu livro Bim Bom, a Contradição sem Conflitos de João Gilberto, o músico e professor Walter Garcia reproduz uma entrevista do percursionista Antonio de Souza, o Milton Banana, que participou da gravação do disco seminal da bossa nova: “João chefiou a gravação do disco Chega de Saudade. Ele pediu um microfone para ele e outro para o violão. O pessoal da técnica estranhou e brigaram muito. A gravação durou quase um mês porque ele era muito exigente, muito temperamental, brigou muito com Tom Jobim, discutindo com a orquestra toda no estúdio e aquela coisa toda.”
Em 3 de dezembro passado, o Superior Tribunal de Justiça deu decisão favorável a João Gilberto contra a gravadora. Na sentença os juízes arbitraram sobre duas questões importantes: 1) A gravadora terá de indenizar o artista pelo não pagamento de royalties no período de 1964 a 1988, quando lançou o vinil O Mito, sem seu consentimento; 2) Além do pagamento dos royalties, a gravadora também fica impedida de produzir e comercializar os fonogramas do artista, ainda que as másteres continuem de sua propriedade.
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Em meados de dezembro, estive no escritório dos advogados Raphael Miranda e Pedro Ivo Mello, que defendem a EMI. Miranda me disse estar cansado de ouvir acusações contra a gravadora, “como se João Gilberto fosse um coitadinho, um pobrezinho”, lesado por eles. Também critica a atitude do artista de achar que, por ser o pai da bossa nova, teria o direito de fazer as coisas ao arrepio da lei, conforme lhe dá na cabeça. Perguntei-lhe sobre a decisão da Justiça de mandar pagar os royalties a João Gilberto. Miranda reagiu dizendo que a gravadora sempre pagou o que devia. No processo, porém, os advogados do Opportunity alegam que eles nunca apresentaram uma prestação de contas. Miranda discordou. Sustenta que os pagamentos, embora pouco expressivos, foram efetuados.
“As gravadoras faziam o que queriam, colocavam as cláusulas que as beneficiavam”, disse Bruno Levick, o especialista em direitos autorais contratado por Daniel Dantas. “O artista não tinha opção. Ou assinava, ou não gravava.” Além disso, os controles de venda eram praticamente inexistentes: os artistas mal sabiam quantos discos tinham vendido. Hoje, qualquer música comprada na internet é imediatamente creditada na conta do músico.
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