A mão esquerda de Maradona e o Deus criacionista. Por Tarso Genro

Atualizado em 26 de novembro de 2020 às 12:09

Publicado no Sul 21

Maradona

Por Tarso Genro

Quinta, 26 de novembro. 2020. Desde cedo da manhã na Casa Rosada, em Buenos Aires, uma multidão comovida desfila perante o esquife de Maradona: futebol, espetáculo, política e religião, frustração de uma nação; desejo de glória e comunhão -no seu leito de repouso- agora é perda. A perda do herói, do atleta perfeito, do Deus  encorpado num feixe de músculos que revestem um homem comum. Ele brigou para equilibrar-se com vida, sobreviver à droga, aos excessos que a fama lhe permitiu, à admiração incondicional do seu povo.

Sua morte agora se faz como reencontro no mito, que foge do cotidiano – ora modelo, ora espanto –  instala-se no inconsciente do Século para todo o sempre. No restos mortais de Maradona, o homem do povo que venceu as barreiras do mundo e concebeu a ideia de uma meritocracia  da gente espoliada que quer vencer, por qualquer meio. E de qualquer forma, inclusive pela mão de Deus..

A Argentina do Século passado deixou à América, Che Guevara e Evita. Agora ambos estão fundidos num corpo inerte, que expele luzes de bravura. A graça da certeza e a habilidade – fluente nos verdes campos maquiados do futebol mundial – faz-se hoje memória e reverência. Tudo é rebeldia que não renega as suas origens na pobreza que o cercou na infância e que lhe deu autoridade para dizer que a sua mão – numa fraude esportiva histórica – é a “mão de Deus”. Será?  Pode ser.

Não há nenhum abuso na metáfora, afinal o Deus criacionista gerou o Homem, a mulher subordinada a uma costela, deixou o mundo humano a sua própria sorte: ao livre arbítrio dos que podem exercer o arbítrio! O Deus, criacionista – por coerência – bem que poderia permitir o uso daquela mão num gol decisivo, para o brio argentino. Afinal este mesmo Deus  também permitiu que genocidas – como Bolsonaro e Videla no poder – fossem demônios abstratos da política, para se tornarem gestores concretos da nossa vida e da nossa morte. Repousa em paz Maradona! Mereces. Que os anjos sujos e puros dos tristes arrabaldes da miséria portenha te recebam com carinho e paz.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.