A mercantilização da medicina e o parto normal: Por que o número de cesáreas do Brasil escandalosamente alto

Atualizado em 24 de dezembro de 2020 às 15:35
Escultura em homenagem às parteiras

Por Paulo Henrique Arantes

Um dia, a crise aguda provocada pandemia do novo coronavírus ficará no passado e os problemas crônicos da saúde no Brasil terão de ser enfrentados. O primeiro passo, claro, é deixar de subfinanciar o setor, o que exigirá o fim do draconiano teto de gastos. Dono do mais audacioso modelo de saúde pública do mundo – o SUS -, o país conta com uma estrutura ramificada de atenção à saúde cuja utilização plena levará à universalização de fato. Paralelamente, será necessário conter certo corporativismo médico e tornar a medicina suplementar instrumento de avanço sanitário, não de uso mercantil da saúde.

      A mercantilização da saúde é notável na área obstétrica. Em qualquer fonte que se busque, se verificará que mais de 80% dos partos realizados por planos de saúde são cesáreas. Não há justificativa médica para tal índice, a não ser o preço maior do procedimento cirúrgico e o tempo menor gasto com a mobilização da equipe de parto.

      Não se concebe evolução sanitária nesse campo sem o incremento da participação de parteiras, como acontece em países desenvolvidos.

       The Lancet Global Health, talvez a mais prestigiada publicação mundial da área médica, divulgou em dezembro artigo sobre o trabalho das parteiras – no feminino, pois as mulheres são mais de 90% da categoria. Eis o que diz The Lancet: 67% das mortes maternas, 64% das mortes neonatais e 65% dos natimortos em 88 países de baixa e média renda poderiam ser evitados com a prestação de serviços por parteiras, considerando-se aquelas formadas conforme os padrões internacionais e integradas às equipes multidisciplinares de obstetrícia.

      Segundo as autoras do artigo publicado por The Lancet, um aumento substancial na cobertura multidisciplinar poderia evitar 41% das mortes maternas, 39% das mortes neonatais e 26% dos natimortos.

      “É preciso trabalhar em equipe, otimizando recursos. Para um atendimento tanto na gravidez quanto no parto e no pós-parto de risco habitual – quando a mulher não apresenta nenhuma doença associada e teve um pré-natal dentro da normalidade –, as parteiras prestam um atendimento com muita qualidade e com muita satisfação às mulheres”, afirma a obstetriz Glauce Soares, doutora em Ciências da Saúde pela Escola de Enfermagem da USP.

      Uma parteira profissional pode se graduar de duas maneiras. Uma, baseada no modelo americano, em que a pessoa cursa faculdade de enfermagem, pós-graduação e especialização em obstetrícia. Outra é a graduação em curso de obstetrícia de nível superior – neste caso, há só um no Brasil, no campus da USP na Zona Leste da cidade de São Paulo.

      A atuação das parteiras está normatizada no SUS, mediante a Portaria Número 11 do Ministério da Saúde, de 2015, embora nem todos os Centros de Parto Normal contem com essa profissional.

      “O SUS tem, por meio do Programa Rede Cegonha, toda uma ideia, uma filosofia, que dá acolhimento com segurança para as mulheres. Na Portaria Número 11 estão contempladas a enfermeira obstetra e a obstetriz tanto para prestarem o cuidado quanto como profissionais responsáveis técnicas, que cuidariam da administração”, explica Soares.

      Membro da diretoria da ReHuNa (Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento) e da FLO (Federacion Latinoamericana de Obstetras), ela comenta: “O problema em geral é o desconhecimento da importância e do quanto o trabalho da parteira pode ser bom para as mulheres. A gente sabe que tem uma questão mercadológica, corporativa, também envolvida, inclusive na questão da cesariana e do parto normal – tem isso! Mas eu acredito que a questão principal é a implantação do modelo, baseado nas evidências científicas a centrado na mulher: não é a categoria profissional que deve ser protagonista, mas as necessidades da mulher”

      Na medicina suplementar as motivações mercantis, e naturalmente as corporativas, falam um pouco mais alto.  Em novembro, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) abriu consulta pública para discutir a inclusão no rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde da consulta pré-natal feita por parteira, como ocorre no Reino Unido, na Alemanha, na França, na Dinamarca, na Holanda.

      A reação dos médicos, por intermédio da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), foi contundente. Em postagens nas redes sociais, os ginecologistas assim concitaram: “A Agência Nacional de Saúde Suplementar está realizando consulta pública para permitir a realização de pré-natal por enfermeiro obstétrico na Saúde Suplementar em substituição do médico. Consideramos que o melhor profissional para realização do pré-natal é o médico. Por isso, solicitamos sua participação nesta Consulta Pública, para que a ANS não introduza esse profissional na assistência pré-natal na Saúde Suplementar. Participe! Isso é fundamental para o bom atendimento obstétrico no país.”

      Nesse sentido, propôs-se que a atuação das parteiras seja condicionada a uma autorização prévia dada por um médico.

      A Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras reagiu com uma nota extensa, da qual o DCM extraiu o seguinte trecho: “Enfermeiros obstetras e obstetrizes são capacitados e habilitados legalmente para serem os primeiros cuidadores da assistência pré-natal, parto e puerpério de mulheres gestantes e parturientes de risco habitual. Entendemos que a proposta de necessidade de autorização por profissional médico desse exercício profissional careça de fundamento, e configure hierarquia de relações interprofissionais, na contramão da proposta de transdisciplinariedade almejada para o melhor cuidado obstétrico. O médico não é o coordenador do cuidado, e sim um membro da equipe, com o mesmo poder de discussão de todos os profissionais envolvidos na atenção obstétrica”.

      O DCM perguntou à Febrasgo a razão da discriminação. A resposta, protocolar, não condiz com a ação da entidade face à audiência pública: “A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) apoia o trabalho em equipe multidisciplinar na assistência obstétrica, em benefício da mãe e do recém-nascido, tendo como objetivo um parto que seja o mais seguro possível, baseando-se sempre nas melhores evidências científicas”.

Não bastasse o corporativismo médico, as mulheres também têm de enfrentar parlamentares alheios aos consensos científicos, como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL). No caso dela, O Tribunal de Justiça de São Paulo nos salvou.

Por unanimidade, em julho de 2020, o TJ julgou inconstitucional a Lei 17.137/2019, decorrente de Projeto de Lei de Paschoal, que liberava cesáreas sem indicação médica. O projeto havia sido sancionado pelo governador João Doria (PSDB) em agosto de 2019, após aprovação em regime de urgência pela Assembleia Legislativa de São Paulo.

Ao analisar o processo, o Órgão Especial do Tribunal entendeu que a chamada “Lei das Cesáreas” invade a competência legislativa da União, conforme indicou ação apresentada pelo PTB.