A mídia tenta realinhar a História para se livrar da paternidade bolsonarista. Por Tiago Barbosa

Atualizado em 27 de fevereiro de 2020 às 8:11
Jair Bolsonaro (foto: Carl de Souza / AFP)

Está em curso no Brasil uma nova tentativa cínica do jornalismo comercial de realinhar os fatos para cavalgar a narrativa histórica.

A ofensiva mentirosa passa pela faxina da biografia dos jornalistas e veículos até ontem indiferentes a valores humanistas e complacentes com arroubos autoritários.

Era a época do PT e, contra o PT, claro, valia tudo: feminismo, machismo, racismo, golpe, manipulação judicial, milícia eram tudo mimimi de esquerdopata.

A pregação do ódio contra a esquerda era diária, lembra? Colunistas e repórteres engoliam a seco todo tipo de versão, por mais estapafúrdia, para ferrar os petralhas.

Valia até tripudiar da roupa e do andar de Dilma porque misoginia, sabemos, não nasceria ali, é óbvio.

Enforcar bonecos de Lula e Dilma na Paulista? Ah, bobagem. Liberdade de expressão. Exortar fechamento do Congresso, do STF era coisa de “poucos”, valia nem a pena mencionar.

O importante era o tom solene de Bonner no Jornal Nacional para exaltar a “pacificidade” das manifestações. Nem se fale nos casos “isolados” de violência.

Dilma com vagina transformada em tanque de combustível? Metralhar a petralhada? Exagero da esquerda. Chola mais. Afinal, Bolsonaro jurou para Bonner no Jornal Nacional o cumprimento da Constituição.

Mas havia um inconveniente constante nas mídias progressistas – os sujos, entende? -, difícil de calar e convencer, de cooptar, com umas previsões chatas sobre um futuro sombrio, quebra democrática, desrespeito aos direitos humanos, perseguições à arte e à diversidade sexual.

Vira essa boca para lá, bradavam as mirians, veras, marilizes da vida. Guedes estava aí, o neoliberalismo prosperaria sob o bolsonarismo adubado pelo ódio. Bastava.

Mas a vida, era óbvio, deu uma rasteira nos cúmplices de fascismo e plantou as trevas no destino dos iludidos – e, sobretudo, dos cínicos e canalhas.

E como reconhecer a burrada e o mau-caratismo de ter aderido ao fascismo e cavado a própria cova? Autocrítica, ne? Nada. É simples: sequestra a realidade, refaz a narrativa e, voilá, os panacas posam de perseguidos.

A vítima é o ex-carrasco na era do cinismo.

Quem cuspia no feminismo, debochava do machismo, ridicularizava a misoginia agora usa como escudo – contra os monstros que criou – as bandeiras enxovalhadas.

A mutação requer, no entanto, o silenciamento das vozes de alerta – e aí, a canalhice é protagonista.

Nada de admitir a cegueira (ou a má-fé) de ter ignorado os avisos – vale mesmo é se passar por coitada, se agarrar aos parceiros da barca furada e fazer da incompetência prévia a razão de uma consciência tardia.

Os inconsequentes querem posar de mártires na fantasia da nova narrativa. Não são.

E é preciso apontar, sim, a despeito dos incautos de plantão, quem regou o fascismo com sarcasmo, ignorância, ódio e politicagem barata. A culpa é deles.

O despertar dos tolos não adormece a reflexão e o bom senso. Esquecimento é sinônimo de repetição.

Se a omissão passar batida pelo escrutínio público, amanhã os neoarrependidos prostituem novamente o espírito critico e os valores democráticos em nome de interesses espúrios – com a desfaçatez usual de quem destruiu o país e foi à rua como pato amarelo celebrar.

E esse pesadelo civilizatório – falemos à vera – ninguém merece viver outra vez.