Ascendeu à arena celeste o imortal Pelé, alter ego de Edson Arantes do Nascimento, considerado a maior estrela do mais popular esporte do mundo. Em 1999, o Comitê Olímpico Internacional (COI) o elegeu como “Atleta do Século”. No ano seguinte, ganhou da Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS) o título de “Jogador de Futebol do Século”.
Pelé morreu nesta quinta-feira (29), aos 82 anos, em São Paulo. Estava internado no Hospital Israelita Albert Einstein e não respondia mais ao tratamento quimioterápico que vinha fazendo desde setembro do ano passado. Operado de um câncer de intestino, foram diagnosticadas metástases no intestino, no pulmão e no fígado.
Tomando-se como base o acervo do Santos Futebol Clube e os registros da mídia especializada, foram 1283 gols em 1363 jogos, ao longo de 21 anos de carreira oficial, desde a estreia no Santos Futebol Clube, em 7 de Setembro de 1956, até o jogo despedida, pelo New York Cosmos, em 1º. de Outubro de 1977.
Há uma permanente revisão histórica desses números, mas existe algum consenso em torno de 767 gols em 830 partidas oficiais. A diferença vem de inúmeras partidas amistosas, comuns na época, algumas disputadas por clubes, outras por combinados, seleções estaduais, seleções regionais ou pela equipe do Exército Brasileiro.
Pelo Santos, foram 1091 gols, em 1116 jogos; pela Seleção Brasileira, 95 (77 em partidas consideradas oficiais); e pelo Cosmos outros 64. A vítima preferencial do Rei do Futebol foi o Corinthians, no qual sapecou 50 gols.
Em sua longa jornada, Pelé compôs uma robusta galeria de títulos. São três mundiais de seleções (1958, 1962 e 1970), seis torneios com status de conquista nacional (1961, 1962, 1963, 1964, 1965, 1968), duas copas Libertadores de América (1962 e 1963), duas disputas intercontinentais (1962 e 1963), dez Paulistões (1958, 1960, 1961, 1962, 1964, 1965, 1967, 1968, 1969 e 1973), além de um caneco da Liga de Futebol Norte-Americana, pelo Cosmos, em 1977.
Pelé nasceu em 23 de Outubro de 1940, na cidade mineira de Três Corações, filho de João Ramos do Nascimento, um ex-jogador de futebol conhecido como Dondinho (1917 – 1996) e de Celeste Arantes do Nascimento, que completou 100 anos em 20 de Novembro de 2022. Foi batizado como Edson em homenagem ao inventor e empreendedor norte-americano Thomas Alva Edison, desenvolvedor pioneiro da lâmpada elétrica incandescente. A figura era muito louvada por Dondinho, que experimentara as trevas da noite em seus anos de menino. Em 1945, a família se transferiu para Bauru, no interior de São Paulo.
Em casa, Pelé foi logo apelidado de Dico. Em seus primeiros namoros com a bola, o garoto procurava imitar um colega futebolista de seu pai, José Lino da Conceição, um arqueiro ousado do Vasco de São Lourenço, em Minas Gerais, cujo apelido era Bilé.
O pequeno Edson sonhava ser goleiro. No quintal da residência, ao praticar uma defesa, encarnava o goleiro e narrava: “seguraaa, Bilé”. Confusos com o mineirismo de pronúncia, os meninos da rua entenderam Pelé, e constituíram o codinome que se tornaria famoso em todo o planeta. O detalhe é que o apodo pegou justamente porque o rapazinho odiava o motejo. Em 2006, o futebolista declarou o seguinte a um repórter do tabloide alemão Bild.
– Meu nome verdadeiro é Edson. Eu não inventei Pelé. Eu não queria esse nome. Pelé soa infantil em Português. Edson é mais como Thomas Edison, o homem que inventou a lâmpada.
Em seus primeiros anos, Pelé vivia de forma modesta. Em geral, exercitava-se no ludopédio com uma bola de meia recheada de folhas de jornal amassadas. Começou sua jornada esportiva no Sete de Setembro, time que atuava nos terrões do bairro. De lá, foi para o Ameriquinha e depois para o “Baquinho”, a representação infanto-juvenil do Bauru Atlético Clube (BAC). O time reunia promissores talentos. E Pelé era um de seus artilheiros.
Quando a equipe de aspirantes se desfez, a molecada migrou ao futebol de salão. Formaram o Radium, em honra ao famoso homônimo da cidade de Mococa (SP). Foi quando Pelé apurou sua técnica. Sobre o cimento, precisava a pensar e agir mais rapidamente, gerando soluções no espaço restrito.
Em 1956, as beiradas dos gramados e quadras de Bauru já se enchiam de curiosos para ver aquele malabarista da bola. Foi quando o Bangu, do Rio de Janeiro, fez uma proposta para incorporar o adolescente a seus quadros. Dona Celeste vetou o acordo. Temia que o filho sofresse com as tentações e perigos de uma cidade grande e distante. Waldemar de Brito, técnico no BAC, resolveu então apresentar o prodígio ao Santos. A seus interlocutores, afirmou que se tratava do “maior jogador de futebol do mundo”.
Houve desconfiança, até mesmo ceticismo, mas o técnico peixeiro Lula (Luís Alonso Pérez) logo se impressionou com o menino. Era lépido, insinuante, tinha excelente domínio de bola, demonstrava incrível visão de jogo, chutava com os dois pés, cabeceava com precisão e até sabia “catar” no gol. O primeiro contrato foi firmado em Junho de 1956, três meses antes do já citado primeiro gol, contra o Corinthians de Santo André. Iniciava-se a epopeia que encantaria os aficcionados do esporte por mais de duas décadas.
Dois anos depois, Pelé converteu-se em esperança para a esquadra que, na Suécia, tentaria finalmente conquistar um Mundial de seleções para o Brasil. Ainda pesava o trauma da derrota para o Uruguai, na final doméstica de 1950. Havia gente graúda e experiente no time, como Didi, Nilton Santos e o goleiro Gylmar.
Antes da convocação final, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) convocou o psicólogo João Carvalhaes para aplicar aos atletas um teste de inteligência e equilíbrio psicológico. De 123 pontos possíveis, Pelé obteve apenas 68. A avaliação do profissional foi a seguinte:
– Pelé é obviamente infantil. Falta-lhe o necessário espírito de luta. É jovem demais para sentir as agressões e reagir com a força adequada. (…) Não acho aconselhável seu aproveitamento.
A sugestão não foi acatada, e o jovem astro santista seguiu com a delegação. Nas duas primeiras partidas curtiu a reserva. Há quem diga que a comissão técnica o reprovava pela inexperiência. Outros, porém, apontam uma lesão que limitava os movimentos do craque. Antes da Copa do Mundo, Pelé havia se contundido com certa gravidade numa disputa de bola com o inclemente lateral esquerdo Ari Clemente, do Corinthians.
No terceiro jogo, contra a URSS, Pelé entrou no time e logo tornou o Brasil uma máquina de jogar futebol. Entre seus feitos, destaca-se o gol da vitória contra o País de Gales. Aplicou um lençol no adversário e, antes que a bola tocasse o gramado, fuzilou no canto do arqueiro. No dia 29 de Junho de 1958, somando 17 anos e 249 dias, tornou-se o jogador mais jovem a disputar uma final da Copa do Mundo. Anotou dois tentos na vitória brasileira por 5 a 2 sobre os donos da casa. Em um deles, aplica um mágico chapéu no zagueiro antes de concluir para as redes adversárias. Terminou a competição com seis gols em quatro jogos. Foi quando se converteu em estrela mundial do esporte.
Em seus primeiros anos no futebol profissional, Pelé logrou naturalizar o mágico exercício lúdico com a redonda. Fazia tantos gols e de tantos modos diferentes, que o insólito curioso se estabeleceu, paradoxalmente, no universo do erro. Para muitos fãs, seu magnus opus foi a Copa de 1970, disputada no México, quando o Brasil conquistou o tricampeonato mundial. Pelé anotou quatro gols. Por incrível que pareça, são menos lembrados que suas jogadas malogradas.
Contra a Tchecoslováquia, chutou do meio do campo, com a intenção de surpreender o goleiro Viktor. A bola desviou-se caprichosamente no trajeto e não varou a meta adversária. Contra a Inglaterra, desferiu um petardo de cabeça que o guarda-metas Gordon Banks foi buscar no canto direito da cidadela. Para muitos, aquela se tornou a mais portentosa defesa da história do futebol. Contra o Uruguai, Pelé iludiu o goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz com uma variante do “drible da vaca”, mas concluiu para fora, enviando a bola rente à trave. No contexto humano do contraste, os lances mais populares de Pelé são, justamente, três figurações do equívoco.
O atleta santista era, na época, uma figura mundial, que, direta ou indiretamente, modificava a vida na Terra. Retornemos um tantinho na máquina do tempo, mais precisamente a 1969, aquele ano efervescente, quando o homem pisou pela primeira vez na Lua.
Entre os temas de relevo discutidos em rodas de bar ou almoços de família, pontificava a ocorrência singular e inevitável do milésimo gol do Rei do Futebol. Em 4 de Novembro, Corinthians e Santos faria, no Pacaembu, um duelo válido pela Taça de Prata. Pelé somava 996 gols e havia quem apostasse numa quadra de tentos contra o alvinegro de Parque São Jorge. Para o estupendo camisa 10, não se tratava de missão impossível.
Naquela época, o ativista resistente Carlos Marighella era considerado pelas forças de repressão como o “inimigo público número 1” do regime militar. Era implacavelmente perseguido pelo delegado torturador Sérgio Paranhos Fleury. No universo nebuloso das múltiplas narrativas, há quem afirme que o guerrilheiro – já convertido ao corinthianismo – dividia sua atenção entre o pré-jogo radiofônico e o encontro com parceiros de luta.
Por meio de informações privilegiadas, os agentes fora da lei lograram encurralá-lo diante do número 800 da Alameda Casa Branca, na Zona Sul de São Paulo. Na emboscada, Marighella não teve chance de se defender. Foi assassinado a tiros, no Fusca placa de São Paulo, numeração 24 69 28, em ação que gerou ruidosas celebrações nos quartéis de todo o Brasil.
No momento do crime, Corinthians e Santos já jogavam no Pacaembu lotado. No segundo tempo, os alto falantes anunciaram a morte do líder esquerdista. O Corinthians goleou o rival por 4 a 1, com dois gols de Rivellino, um de Ivair e outro de Suíngue. Sem chances para Pelé.
Oito dias depois, o craque marcaria dois gols contra o Santa Cruz, em triunfo santista por 4 a 0, na Ilha do Retiro. Dias depois, mais um gol, de pênalti, desta vez contra o Botafogo da Paraíba, no Estádio Olímpico, em João Pessoa. No dia 19, no Maracanã, finalmente saiu o gol 1000, também em penalidade máxima, na vitória sobre o Vasco por 2 a 1.
Um mito de mil faces
Perdura há décadas uma polêmica em torno da preferência clubística original de Pelé, que obviamente se tornou devotado santista. E o próprio atleta contribuiu para alimentar a incerteza. Em uma entrevista ao Canal Pilhado, declarou ter sido sempre um torcedor do Vasco da Gama.
– Eu não fui vascaíno, eu sou ainda – sentenciou. – Eu sou Vasco.
Segundo ele, na época de Seleção Brasileira, brincava com os companheiros por causa de sua preferência pelo clube de São Januário. Afirmou ainda que, se não fosse o Santos, teria disputado campeonatos oficiais pela esquadra vascaína.
Em Março de 1999, no entanto, falando para a revista Placar, o ex-jogador declarou que torcia pelo Atlético Mineiro, por causa do pai, que fizera um jogo oficial pelo clube, contra o São Cristóvão, em Abril de 1940.
– Essa história (de ser vascaíno) começou quando eu disputei um torneio por um combinado Santos-Vasco. Mas, na verdade, eu torcia pelo Atlético Mineiro, porque meu pai, ‘seu’ Dondinho, jogou lá – assegurou o craque, sempre gentil com a pluralidade narrativa.
No livro “De Edson a Pelé – A Infância do Rei em Bauru”, publicado em 1997, o escritor Luiz Carlos Cordeiro afirma que o Rei do Futebol tinha um time de botão do Corinthians e que teria comemorado o título estadual corinthiano de 1954. Amigos de infância confirmaram a história.
– Nós estávamos saindo de um jogo do Noroeste quando alguém gritou que o Corinthians tinha sido campeão. Saímos pulando pela rua, comemorando – revelou Raul Marçal da Silva, um dos melhores amigos de infância do Rei, em entrevista ao Globo Esporte. – Ele era corintiano, sim. Muito fã do Baltazar. Todo gol que fazia de cabeça, saía gritando que era gol do Baltazar – assegurou.
Legado político controverso
No âmbito do Ministério do Esporte, Pelé foi protagonista no processo de aprovação da Lei 9.615 de 24 de Março de 1998, norma jurídica do desporto que alterou definitivamente a legislação sobre o passe dos jogadores de futebol. Concebida em grande parte por Hélio Viana de Freitas, vice-presidente do Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto, com mentoria técnica de Gilmar Mendes, à época subchefe jurídico da Casa Civil do governo de Fernando Henrique Cardoso, tinha por suposto objetivo criar um ambiente de maior transparência e governança responsável na área do esporte.
Além de eliminar o passe nas agremiações de futebol, fixou regulamentos para prestação de contas por dirigentes, estabeleceu regras para o repasse de verbas ao esporte olímpico e redefiniu a competência dos tribunais de justiça desportiva. Na época, a lei foi celebrada como um ato de libertação dos atletas, cujas carreiras eram controladas pelos clubes. Quando de uma transferência, o futebolista tinha direito a 15% do valor da transação. Não havia, entretanto, transparência na contabilidade dessas transações. Os atletas reclamavam porque não tinham poder de decisão no tocante ao desenvolvimento da carreira.
Se houve avanço nesse campo, contudo, a lei abriu espaço para que os grandes negócios do futebol fossem apropriados por empresários privados. Reduzindo-se o poder de decisão dos clubes, criou-se um sistema informal de trocas entre esses agentes e muitos cartolas, frequentemente envolvidos em “rachadinhas” nos processos de transferência. Os jogadores se converteram em produtos de mercado sob controle dos tubarões intermediários. Ao mesmo tempo, muitos clubes desistiram de investir nas categorias de base, desestimulados pela diminuição do retorno financeiro nesse tipo de formação.
Em 2014, o próprio Pelé admitiu os prejuízos da mudança:
– O jogador ficava cinco, dez anos jogando no mesmo clube. Hoje não é mais assim. Muito empresário leva o jogador para a Ásia, Rússia e esquece ele lá, faz o que quiser. Então tem essa parte ruim, que o clube não é mais dono do jogador. O empresário é que manda.
Legado familiar polêmico
Pelé constituiu imensa linha de sucessão, com sete filhos reconhecidos, enquanto colecionava graves problemas em seu diversificado clã. Nos anos 1990, o filho Edinho chegou a defender a meta do Santos com relativo sucesso. Depois, acumulou encrencas com a Justiça. Primeiramente, foi condenado a seis anos de prisão por homicídio, ao se envolver em racha. A sentença acabou anulada. Em 2005, foi detido no âmbito de uma investigação que visava a desmantelar uma quadrilha de traficantes de narcóticos. Em 2014, sofreu condenação por lavagem de dinheiro associado ao comércio de drogas, amargando longos períodos no cárcere.
Em 1991, Sandra Regina Machado, de 27 anos, havia recorrido à Justiça para ser reconhecida como filha do astro. Afirmava ser fruto do relacionado do “Rei” com a servidora doméstica Anízia Machado. Pelé rejeitou a demanda e iniciou uma renhida batalha judicial. Em 1996, depois de analisar provas forenses, fundamentadas em exames de DNA, os tribunais deram ganho de causa à moça. Ainda assim, ela nunca recebeu reconhecimento e amor do futebolista.
– Para mim, biologicamente, ela pode até ser minha filha. Mas, na parte sentimental, não posso me preocupar com essa pessoa, porque não a conheço – manifestou-se o astro na época, para decepção de muitos brasileiros.
Em 2000, Sandra foi eleita vereadora na cidade de Santos. Um de seus êxitos foi tornar gratuito o exame de DNA para assistidos pela rede pública. Em 2006, aos 42 anos, faleceu em decorrência de complicações de um câncer de mama. Deixou dois filhos, de 6 anos e 8 anos.
Pelé também testemunhou o êxito dos filhos, mesmo quando lhe faltou o entusiasmo para o elogio público. Foi o caso de Kely, formada em Artes, cidadã do mundo, que encampou as lutas contra o machismo, o racismo e a homofobia. Em tempos recentes, ela defendeu a vacinação contra a Covid-19, compartilhou posts da Midia Ninja e publicou críticas a Jair Bolsonaro.
Parece uma exceção de novidade na família Nascimento, considerando-se que Pelé sempre foi alvo de críticas por não se posicionar claramente contra a Ditadura Militar e por contribuir pouquíssimo, por exemplo, com as lutas da negritude.
Se Sócrates e Reinaldo elevaram vozes em favor da redemocratização do país, o “Rei do Futebol” preferiu o conforto do silêncio. Se o lateral Wladimir, outro corinthiano, destacou-se pelo ativismo contra o racismo estrutural, o Camisa 10 acomodou-se em seu nicho pessoal de privilégio. Se Maradona abraçou apaixonadamente as causas progressistas, Pelé preferiu o discurso morno das platitudes genéricas, sem jamais enfrentar os opressores.
A já citada Kely, frequentemente questionada sobre a omissão do pai, o definiu em entrevista recente. Ela lembrou que, mundo afora, as pessoas estabelecem comparações entre Pelé e o boxeador Muhammad Ali. Segundo ela, a diferença está na cultura, na educação e na base de influências de cada um. Pelé foi o fruto talentoso de uma educação conservadora. Ali resultou de um caldo fervente de sedição.
– Seria um mundo maravilhoso se o Pelé fosse o Pelé e também um super ativista. (…) Concordo com a frustração atrás das críticas, mas acho também que ele fez muito só por existir.