A morte de um bravo. Por Ulisses Capozzoli

Atualizado em 5 de agosto de 2020 às 23:01

Publicado originalmente no perfil do autor

Por Ulisses Capozzoli

Imagem: Renato Soares, meu parceiro no Xingu no centenário da reserva.

Aritana Yawalapiti, filho de Kanato, desde a manhã de hoje (5/8) não respira mais sobre a Terra, onde esteve ao longo dos últimos 71 anos. Líder mais respeitado do Alto Xingu, dividindo prestígio com o primo, Kotok, líder dos kamaiurá, morreu vítima da epidemia de Covid-19 depois de uma longa e difícil batalha em que saiu derrotado. Aritana era uma espécie de esteio cultural de seu povo e, por extensão de todo o Alto Xingu, ainda que sua atuação se estendesse por todo o parque, com seus 26.420 km², o dobro da Irlanda do Norte, mais de duas vezes e meia o Líbano e o triplo de Porto Rico.

A morte de Aritana, com sua liderança natural, firme e pacífica, identificada por Claudio Villas-Bôas (um dos célebres irmãos Villas-Bôas os criadores da reserva do Xingu para a proteção e sobrevivência de 16 etnias do Brasil Central) pode ser debitada à estúpida e criminosa recusa do governo em oferecer às populações indígenas, os primeiros donos do que agora é o território brasileiro, um mínimo de garantia fitossanitária contra a contaminação que varre o planeta como um demônio enlouquecido. As duas últimas semanas de vida Aritana passou confinado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) num hospital de Goiânia. Até chegar lá, no entanto, despendeu a energia que teria feito a diferença, caso tivesse tido atendimento pronto, negado sob a forma de veto pelo presidente da república a um plano de atendimento às populações indígenas contra as ameaças da pandemia.

Há três semanas ele estava em sua aldeia, junto ao rio Kurisevo, um do formadores do Xingu, quando teve um forte crise respiratória, diagnosticada em seguida como Covid-19. Inicialmente ficou em Canarana, um dos portões de entrada da reserva indígena pelo Sul, mas sua saúde piorou sem que os médicos do parque tenham podido contar com socorro aéreo. Chegou a Goiania ao final de uma viagem de dez horas a partir de Canarana, no interior de uma ambulância, respirando com ajuda precária de um cilindro de oxigênio. Quando deixou o Xingu, segundo o depoimento de uma sobrinha, Ana Paula Xavante, mais de 50% de seu pulmão já estava comprometido.

A morte de Aritana, uma das memórias de seu povo, é mais uma nódoa na imagem internacional do Brasil, ao menos em relação às populações sensíveis à proteção que culturas mais ameaçadas devem merecer antes que se transformem em imagem apagada do passado. Aritana falava, além da língua de seu povo, do tronco Aruak, outras quatro, como a dos seus parentes próximos, os Kamaiurá, do tronco Tupi-Guarani. Desde a infância, foi preparado pelo pai, Kanato Tepori, para o resgate de sua gente e essa é mais que figura de linguagem. Quando os Villas-Bôas chegaram ao Xingu, comandando a Expedição Roncador-Xingu (para desbravar o Brasil Central como uma das consequências geopolíticas da Segunda Guerra Mundial) os Yawalapiti estavam reduzidos a sete sobreviventes. Orlando Villas-Bôas, e isso ouvi muitas vezes da boca dele mesmo, estimulou casamentos com os kamaiurá e assim os Yawalapiti renasceram. Aritana passou cinco anos recluso em casa, recebendo ensinamentos do pai, tios e avós numa preparação para a tarefa que tinha pela frente. Sua gente havia minguado a partir dos anos 30 e só a miscigenação, que também incluiu os Kuikuro, do tronco Karib, permitiu essa dramática recuperação. Ouvi isso mais de uma vez de Aritana, em especial em um depoimento que me concedeu em 2011 para uma edição especial de “Scientific American Brasil” comemorativa dos 50 anos da reserva.

O Brasil é cada vez mais associado à destruição, incêndio e morte no interior da maior floresta tropical da Terra, a Amazônia, majoritariamente concentrada aqui, e a morte de Aritana divulgada por agências internacionais de notícia já aparecem nas páginas dos jornais e mídia social de todo o mundo. Há um fascínio e um profundo temor pelo que acontece por aqui e também isso não é mero acaso. O Brasil ainda tem sertanistas, gente especializada no contato com povos isolados, no sentido de estarem separados da sociedade exterior, que parte da mídia chama de “civilização”. Como se as culturas originais, que permitiram a sobrevivência de nações inteiras no interior da floresta, e ainda hoje assegurem isso a pequenos grupos, não tivesse consistência e valor legitimados. Certamente é o caso de acrescentar que os “povos isolados” são gente que não teve qualquer contato com a sociedade exterior desde que Cabral desembarcou por aqui. Ao contrário. Eles tiveram e, traumatizados pelo que viram e sofreram, decidiram recuar e procurar abrigo na floresta profunda que agora é vítima do desmatamento, do fogo e de hordas de garimpeiros, também eles resultado de uma social desigual e marginalizadora.

Aritana, por formação cultural e característica pessoal, era um líder conservador, no sentido literal da expressão. Na longa conversa de 2011, comprimida em duas páginas da edição especial de “Scientific American Brasil”, ele falou do temor pelo turismo desenfreado, invasão de pescadores, represas de menor e grande porte, como Belo Monte, além do encantamento de jovens indígenas por motocicletas, pela vida na cidade que ele acreditava ameaçada por alcoolismo e drogas em geral e também da dificuldade de seduzi-los para uma função estratégica da cultural indígena, a pajelança. Apenas essa última referência espaço ilimitado de reflexão e interpretação do que os “brancos” chamam de “realidade”. Aritana não disse, mas deixou claro, a diferença entre uma sociedade mágica, espiritualizada e ritualística e uma sociedade, digamos, cartesiana, mas esvaziada até mesmo dessa possibilidade, pelo consumismo, alienação e competição que um índios é incapaz de imaginar como estilo de vida.

A morte de Aritana, em uma idade em que poderia fazer muito por seu povo e por todo o Brasil, ainda que muitos sejam incapazes de perceber essa possibilidade, é tanto um lamento quanto um alerta. Mais um. Cada dia mais evidente e dramático em uma sociedade submetida a um brutal processo de aniquilação. Quem tiver interesse em conhecer os cenários possíveis por aqui, talvez possa encontrar resposta em um clássico: o livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dorris Alexander Brown, Dee Brown, escritor e historiador sobre a sanguinária aniquilação de populações indígenas nos Estados Unidos, mostradas em faroestes vivenciados por atores reacionários como John Wayne. Ah! Sim. Essa é a fonte da expressão “brancos” para se referir a não indígenas. Injustificada para um pais com perfil como o do Brasil. Aritana, o corajoso e sábio conciliar, no sentido mais nobre dessa expressão, fará falta imensa. E ela já começa a se fazer sentir.