A morte está chegando nas famílias dos negacionistas, diz infectologista

Atualizado em 19 de março de 2021 às 11:49
Cemitério

Publicado originalmente no RFI:

Por Lúcia Müzell

O Brasil em colapso sanitário. Com os hospitais de quase todas as capitais brasileiras lotados por pacientes da Covid-19, o país vive a maior emergência de saúde pública da sua história. Quando as imagens dramáticas não ajudam os negacionistas da pandemia a compreender a dimensão do problema, a morte batendo à porta de milhares de lares de brasileiros escancara a gravidade do coronavírus.

“Tenho a impressão de que o número de pessoas que estão negando está diminuindo, porque a morte está chegando dentro das famílias brasileiras, na vizinhança delas. Mas é uma pena que a gente precise de um cenário tão catastrófico para compreender a gravidade dessa situação”, afirma a médica infectologista Fernanda Grassi, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz na Bahia, em entrevista à RFI.

À sua volta, Salvador e outras cidades baianas enfrentam um drama semelhante ao restante do país: sem leitos para receber os doentes e sem vacinas suficientes para começar a controlar o vírus. As variantes mais contagiosas do Sars-Cov2 fazem a festa em meio a uma parcela da população que, apesar das evidências, ainda hesita em utilizar máscaras de proteção ou não acredita em medidas de distanciamento social. Influenciados por uma narrativa anticiência que chega da cúpula do Planalto direto pelo WhatsApp, alguns ainda defendem que seria melhor “pegar logo” a doença para “ganhar imunidade”.

“Isso é totalmente falso porque sabemos que elas podem se reinfectar, inclusive pelas novas variantes. A de Manaus, que já é responsável por grande parte das infecções no Brasil, certamente tem um papel importante no número de casos que necessitam hospitalização, no aumento do número de mortes e em atingir pessoas mais jovens. Estamos vendo pessoas com menos de 40 anos em reanimação, na UTI e necessitando de intubação”, ressalta Grassi. “Na medida em que se tem uma epidemia completamente descontrolada, como é o caso do Brasil, abre-se um celeiro para a criação de novas variantes. Eventualmente, elas serão mais agressivas e mais transmissíveis, que é o que estamos assistindo.”

Apenas lockdown “verdadeiro” pode inverter a curva

A infectologista ressalta que, para frear essa dinâmica exponencial de mortes, não existem meias-medidas eficazes: apenas um lockdown rígido, de pelo menos três semanas, será capar de começar a inverter a curva.

“É um problema muito grave porque se fala em fazer lockdown no Brasil, mas até hoje as pessoas não sabem o que é um lockdown verdadeiro. Temos medidas restritivas sendo tomadas, como o toque de recolher das 20h até 5h, que são difíceis, porque fecham uma parte do comércio, mas ineficazes do ponto de vista da epidemia”, explica a especialista, que também realiza pesquisas junto a institutos franceses. “Seria preciso um fechamento total por pelo menos 21 dias para se começar a ter algum efeito, afinal estamos numa situação realmente muito grave, que já passou todos os limites do aceitável, há muito tempo.”

Grassi observa que, há um ano, o Brasil adota medidas brandas e inadequadas para enfrentar o vírus, apesar dos alertas dos cientistas. A decisão apenas prolongou e acentuou a pandemia, e os resultados são sentidos não só em vidas, como na economia.

“Eu não compreendo muito bem por que existe essa resistência. Tem que ter a coragem, agora, de parar com esse aumento exponencial do número de mortos que nós estamos todos assistindo, e fechar tudo para que a gente possa sobreviver. Para ter economia, temos que ter as pessoas vivas”, adverte.

Vacinação lenta ameaça toda a campanha de imunização

A médica chama ainda atenção para a urgência de o ritmo das vacinações ser acelerado. Do contrário, alega, a imunidade coletiva estará ameaçada pelo aparecimento de novas cepas do vírus, resistentes aos imunizantes utilizados agora. Os estudos iniciais mostram que os produtos Coronavac e AstraZeneca, utilizados no país, mantêm eficácia contra as mutações conhecidas até o momento.

“O ritmo atual da vacinação é ineficiente: não adianta querer vacinar 70% da população em um ano e meio, porque isso não vai surtir o efeito que desejamos”, destaca. “Novas variantes podem surgir, e não podemos garantir que a vacina manterá sua eficácia.”

Grassi nota ainda que o sequenciamento do genoma dessas mutações não é suficientemente monitorado no país – ou seja, o Brasil sequer está sendo capaz de identificar novas variantes em seu próprio solo, a exemplo do que ocorreu com a de Manaus, reconhecida pela primeira vez por cientistas japoneses.