“A morte excita Bolsonaro. Ele não é diferente do país que o elegeu”, diz João Moreira Salles

Atualizado em 5 de julho de 2020 às 12:05
João Moreira Salles e Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução/YouTube

João Moreira Salles é documentarista e editor fundador da revista Piauí. Ele escreveu um texto na publicação chamado “A morte e a morte” sobre “Jair Bolsonaro entre o gozo e o tédio” na pandemia de coronavírus.

Salles comenta sobre as reações do presidente nesse evento histórico com milhares de mortos.

Confira alguns trechos:

Quando as vítimas da pandemia passaram de 5 mil, no dia 28 de abril de 2020, Jair Bolsonaro foi a um estande de tiro. No dia em que chegamos aos 10 mil mortos, ele passeou de jet ski no Lago Paranoá. Na cerimônia em que concedeu a Ordem do Mérito Naval a Abraham Weintraub e Augusto Aras, o país havia superado os 25 mil óbitos. Dois dias depois ele andou a cavalo no meio de seus apoiadores. Dali a poucas horas, quase 30 mil brasileiros já não estariam vivos por causa da doença. O presidente desconfiou dos hospitais quando os registros contabilizaram 40 mil mortos: “Arranja uma maneira de entrar e filmar”, comandou. E no fim de semana em que a conta da nossa tragédia chegou a 50 mil vidas perdidas, ele ajudou Weintraub a enganar a imigração americana.

Variações do parágrafo acima vêm sendo publicadas a toda hora na imprensa. Seria impossível não reparar no óbvio: em nenhum momento da tragédia o presidente articulou uma frase de pesar verdadeiro. Não houve nem esforço de marketing político para demonstrar que se compadecia dos que estavam sofrendo. O presidente é honesto. Uma das frases mais sinceras da história política brasileira é a breve: “E daí?” Há muitas outras – “Eu não sou coveiro”, “Quer que eu faça o quê?”, “É o destino de cada um” –, mas nenhuma tem a concisão aforística de “E daí?”. Nenhum substantivo, nenhum adjetivo, nenhum verbo. Os mortos, os doentes, os que perderam pais, mães, filhos e amigos, os que diariamente vão para a linha de frente salvar vidas – uma locução adverbial de quatro letras dá conta de tudo que o presidente tem a lhes dizer.

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Trump, aqui, não interessa. Entrou na história por ser o modelo de que Bolsonaro se pretende imitador. Gripezinha, vírus chinês, cloroquina – o presidente brasileiro não foi capaz sequer de inventar as próprias fábulas. A coisa é trazida de Washington e aqui piora um pouco mais, como a má tradução de um livro ruim. O que não significa que Bolsonaro seja apenas uma versão abastardada de Trump. Uma das diferenças entre os dois é que a ausência de empatia no norte-americano está associada ao solipsismo radical de seu narcisismo, ao passo que em Bolsonaro ela tem uma origem mais perigosa. É algo anterior a toda convenção, um impulso que corre por baixo, mais primitivo, mais perturbador, e que no entanto, quando se manifesta, parece lógico: a morte o excita.

Mais precisamente: certas formas de morrer o excitam, enquanto outras o deixam frio. Qualquer antologia das frases que notabilizaram Bolsonaro terá cheiro de sangue e morte. Estupro, tortura, fuzil, exterminou, morra, morrido, matando, pavor, Ustra. Essas são algumas palavras-chave que dão sentido às citações mais conhecidas do presidente. Sem elas, as frases se desfariam. É o sofrimento do outro que as organiza.

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É isso. Em 1964, o poder foi tomado à força. Em 2018, 57,7 milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso. Outros 11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso.

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