A morte por cloroquina de Renan Antunes, um ano depois. Por Remy J. Fontana

Atualizado em 21 de abril de 2021 às 9:33
O jornalista Renan Antunes de Oliveira segurando uma cruz

Por Remy J. Fontana*

Me faz o obituário…” Com a verve que o caracterizava e com a reconfortante segurança de que estava apenas fazendo uma blague, foi com esta expressão que Renan Antunes abriu seu comentário a propósito de um escrito meu. Tratava-se de um texto, apresentado sob a forma de um pronunciamento na Câmara de Vereadores de Florianópolis, em 6 de março de 2017, em homenagem ao ex-prefeito da cidade, Sérgio Grando, meu velho companheiro do PCB – Partido Comunista Brasileiro, por ocasião de 1 ano de seu falecimento. Continuava Renan seu comentário, “Baita texto. Ele merece. E vou querer você escrevendo meu epitáfio!”

Brincadeira entre amigos à parte, no fundo tanto ele quanto eu sabíamos a incômoda verdade, ou ao menos intuíamos uma possibilidade real, ainda interditada de nossos próprios pensamentos, de que não estávamos muito distantes do dia em que eu deveria encarar aquele seu pedido como algo a ser efetivamente atendido.

Uma primeira indicação quanto a este possível sinistro desenvolvimento ocorreu durante um jantar em que reuni alguns amigos, Renan entre eles, em agosto 2015. Ao oferecer-lhe uma bebida, daquelas um pouco mais fortes que precedem o vinho ou a cerveja às refeições, recusou, para minha surpresa, dizendo que não podia beber mais nada pois tinha uma condição, àquela altura já diagnosticada como relativamente grave, diabetes ou algo no gênero, para minha consternação.

De qualquer forma, em termos de sociabilidade e animação, Renan era do tipo que não precisava de nenhum estimulante, de nenhuma bebida para tornar-se um dos personagens mais vivazes, mais argutos, mais divertidos numa reunião de amigos.

Em outro episódio, quando fiz 70 anos, em maio de 2017, que ele não pode comparecer, escreveu justificando-se, “Não fui na tua festa porque tava enfrentando uma grave crise… Do tipo que talvez me impeça de chegar aos 70… Talvez fique nos 67 e meio. Tenho que fazer uma cirurgia complicada nos próximos dias. Se eu passar por ela, nos falamos.  ABS”.

Infelizmente sua “tirada” espirituosa para que eu escrevesse seu obituário saiu do âmbito do humor, meio negro diga-se, para o domínio das realidades que me caberia confrontar. Embora tenha escrito uma pequena nota quando de sua morte, me coloquei desde então a tarefa de registrar algo que pudesse ajudar a delinear seu perfil, a título de uma última homenagem.

Caricatura de Renan feita pelo artista Mitsue Yanai

As duas mortes do Renan.

A primeira ele mesmo descreveu numa postagem no Facebook em 21 de março 2020:

 “Morri hoje perto das oito. Ė minha quinta morte, mas foi a mais completa: ia tomar café e cai no chão da cozinha feito um prato velho. Meu coração parou. Fiquei com a pele escura, língua enrolada e mãos contraídas como numa convulsão – pelo relato da minha sogra, com experiência de 40 anos de enfermagem no México. Acordei minutos depois com massagens cardíacas.  …. Não vi nem ouvi nada, só a escuridão total. Causa: minha pressão é que se altera com o transplante renal. Ficou tão baixa – às vezes, menos do que 80 por 50. Quando cai assim, paft.

Quando eu percebo, corro (ou melhor, me arrasto) prum sofá com almofadas já prontas para elevar bem os pés e baixar a cabeça, como morcego – aí o sangue vem das pernas para a cabeça e com ajudinha o coração volta a bater. Se estiver sozinho, já era ……

Tentei levantar meia hora depois e acordei de novo com minha sogra pulando em cima de mim e me dando tapas na cara, porradas no coração e gritando ” respira Renan!” Coro da minha mulher enquanto levantava as pernas: ” Renaaannnn respira, respira…” Minha sogra só me deixou sair do chão da cozinha ao meio-dia e meio, quando me deu por estabilizado.  Quando levantei já estava de roupinha limpa e cheio de talco.

E aí, como está sendo o sábado de vocês? Aposto que comum e desinteressante.

Tenho certeza que não tem as emoções fortes e shows como o meu…

Até a próxima morte!!!

Sua segunda morte, em 19 de abril de 2020, ele não pode descrever, pois desta vez foi real e definitiva.   Em 16 de fevereiro de 2020 fez um transplante de rim que aparentemente estava dando certo; em 27 e 28 de março tive um último contato com ele. Em 3 de abril foi detectado um vírus em seu pulmão; prescrição de antibiótico e 14 dias de isolamento. Foi internado em 15 de abril, com suspeita de covid, que não se confirmou.  Voltou para casa com uma inacreditável prescrição, cloroquina. Apesar de ser crítico a este medicamento, àquela altura já bastante questionado, ironicamente acabou tomando-o, o que dias depois lhe acarretou uma fatal parada cardíaca.

A última vez em que estivemos com ele, eu e meu filho Renan, foi em 18 dezembro de 2019, no lançamento de seu livro, “Reportagens em carne viva com calda de chocolate”. Autografou meu exemplar, “Para o professor [como gostava de me chamar] Remy Fontana, companheiro de lutas e letras, do Renan”.

No site da Amazon a obra e o autor são assim apresentados:

O livro é uma coletânea de reportagens do grande jornalista brasileiro Renan Antunes de Oliveira. Além das reportagens o livro traz um pouco de sua trajetória profissional e dados biográficos. O jornalista trabalhou para muitos veículos de mídia impressa e na web para grandes e pequenas empresas entre elas o Jornal Já, Estadão, Diarinho de Itajaí, Folha, Globo, JB, Istoé, Veja, Jornal de Brasília, Gazeta do Povo (PR), Diário Catarinense (SC), Correio do Povo (RS), Coojornal, Brio Stories, Agência Pública, DCM. Um dos prêmios mais importantes do jornalismo nacional, o Prêmio Esso, ele recebeu por uma reportagem feita para um pequeno jornal de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. O autor responde para quem estranhar o título: – “De onde tirei o título? Angelina, minha filha de 11 anos, leu o copião e disse que só tinha desgraça, morte, assassinato, sangue. Parei pra pensar. Aí, meti algumas coisas menos dramáticas. Resultado: continua em carne viva, mas pelo menos com calda de chocolate”.

Muitos jornalistas, seus pares, escreveram sobre o que o caracterizava no exercício da profissão, o que o tornava uma figura única enquanto repórter da velha cepa. Sobre como escrevia, produzia textos e contavas histórias que “ficavam grudadas na gente pelo resto da vida” (Adriana Baldissarelli).

De fato, foi um raro exemplar enquanto jornalista, mas foi igualmente uma personalidade ímpar enquanto ser humano, vulcânico, carismático, telúrico, pé-no-chão figurativa e existencialmente, daquelas pessoas que preenchem um espaço, marcam um tempo, circunscrevem um período, dão contorno a um contexto, um sentido a uma relação, um significado a uma amizade.

Renan Antunes de Oliveira. Foto: Reprodução/Facebook

Me permito aqui algumas rememorações pessoais para explorar alguns elementos que ajudem a construir um perfil, delinear uma personalidade, ou mostrar seu jeito de ser.

Nos conhecemos na segunda metade dos anos 70, quando morávamos na Lagoa da Conceição. Fomos das primeiras ondas de “urbanitas”, jovens adultos de formação universitária (professores, advogados, jornalistas, arquitetos, escritores etc.) que se deslocavam do centro e bairros de Florianópolis em direção ao interior da ilha. Compúnhamos um agrupamento de gente genericamente progressista, irmanados na resistência ativa ou presumida à ditadura, alguns “alternativos” dos anos 60, com preocupações ecológicas, que nos impelia para os espaços pouco habitados no caminho da Costa da Lagoa principalmente, habitando moradias um tanto precárias, seja porque eram antigas casas coloniais, ou casinhas meio improvisadas compradas ou alugadas dos manezinhos nativos. Renan morava ao lado da igrejinha da Lagoa da Conceição, onde minha primeira mulher também tinha uma casa “das antigas”.

Em novembro de 1979 o Gal. João Figueiredo, último ditador do regime de 64, em visita à Florianópolis pretendia, dando curso à “transição lenta, gradual e segura” de seu antecessor, Gal. Geisel, remodelar sua imagem, do carrancudo chefe do temido SNI com seus sinistros óculos escuros para o amistoso “João, presidente da conciliação”. Tal estratégia de marketing político fajuto não resistiu a alguns protestos, na praça em frente ao Palácio do Governo local, que ao adensar-se como reação á conduta desastrosa de Figueiredo desandou num incidente de graves proporções, dando fim à tentativa de popularizar o presidente e legitimar a estratégia da distensão do regime. Este episódio ficou conhecido na crônica política do fim do regime autoritário como a “Novembrada” (ver em https://aterraeredonda.com.br/a-novembrada/).

Cito este episódio pois sobre ele Renan fez uma ampla matéria à quente, colada aos acontecimentos que se desenrolavam em Santa Catarina ao longo de vários dias, para o Coojornal, de Porto Alegre, na qual constava uma entrevista comigo, na condição de professor de Ciência Política da UFSC.

Vem, pois, desta época e possivelmente desta reportagem nossa contínua relação de amizade e de algumas escaramuças político-jornalísticas, ao longo de 40 anos. Já antecipo que minha amizade por ele já se conjugava com admiração, a tal ponto de dar ao meu filho, que nasce em 1983, o mesmo nome do amigo.

Nas eleições gerais de 1982, as primeiras diretas para governadores, eu estava intensamente envolvido com a candidatura do PMDB de Jaison Barreto, como um dos coordenadores do comitê da pré-campanha e do programa de governo. Renan foi a primeira pessoa que lembrei de convidar para dar visibilidade à candidatura, difundir orientação política aos partidários, divulgar notícias, informações e tópicos para debate público municiando ativistas e militantes, através de jornal próprio. Com parcos recursos, meios precários, apoios um tanto inconsistentes e intermitentes da direção partidária, só a energia incontida, a capacidade de trabalho e a ousadia do Renan fez com que surgisse “A Mudança”, o jornal de campanha.

Mobilizou amigos jornalistas, talentos gráficos, ilustradores (como os irmãos Ige  e Lengo, Edgar Vasques, à época um dos mais festejados chargistas do país), que deram ímpeto político e qualidade editorial à publicação, trabalhando por amor à arte, diga-se, à arte política das lutas democráticas do período. No mesmo diapasão da luta política, vamos encontrá-lo à frente, em 1985, de outra publicação combativa, “Lutas da maioria”, com que invectivávamos tanto a oligarquia catarinense, quanto a frouxidão dos que a combatiam por dentro dos partidos supostamente oposicionistas.

Depois de um hiato de algumas décadas, quando se lançou mundo afora, da China aos EUA, nos últimos anos voltou a Florianópolis, de onde atuou como correspondente de veículos e plataformas digitais, notadamente o DCM, no último período.

Renan Antunes de Oliveira

Sempre ligado. Em 5 outubro de 2014 ele tinha pedido para nos encontrarmos, pois tinha uma questão que precisava de algo que eu poderia encaminhar. Acabou desmarcando, segundo suas palavras “deixemos pra outro dia…correria intensa”. Este pequeno registro dá uma indicação de seu sentido de trabalho, sempre demandando alguma urgência; com ele não havia tempo lento, tempo morto, sempre atrás de cumprir uma pauta, investigando fatos, seguindo pistas para desvendar algum episódio, montando peças de um quebra-cabeças para esclarecer acontecimentos, anotando com apuro etnográfico detalhes do que observava, para enfim escrever sua matéria, enquadrando-a nos devidos contextos.

Sempre na luta, mas sem perder o humor

No início de janeiro de 2019, quando tomou posse o miliciano genocida, eu estava embarcado num cruzeiro contornando o Cabo Horn – Ushuaia, e comentei na internet que conforme as ações do governo do capitão reformado ficaria mesmo pela Patagonia, ao que retrucou o Renan “Fugindo na primeira escaramuça!!! Eu fico pra enfrentar Bozo, os filhos dele, Onix e aquela manada de generais…”

Jornalismo sem amigos.

Há um certo senso comum que diz que dos mortos só se deve falar bem; das desventuras que sucedem aos infelizes, sendo a morte a maior destas, resulta que deveríamos refletir mais a respeito de seus méritos. No entanto, acho que o próprio Renan aprovaria algumas ressalvas que se poderiam fazer a algumas de suas matérias, quando investia com alguma fúria, impropriedade ou desrespeito seja com a conduta que presumia de alguns personagens, seja com a pertinência de algumas de suas invectivas.

Adepto do que se atribui a Paulo Francis, de que jornalista não tem amigos, na companhia do qual aliás não deveria estar muito à vontade, visto Francis ter descambado para a direita, Renan não poucas vezes se indispôs com amigos, quando estes se tornavam protagonistas de algo que poderia virar matéria jornalística, que recebia dele um tratamento sem concessões. E realmente deixava de vez em quando estes amigos chateados, achando que tinham sido vítimas, em suas matérias, de um tratamento equivocado, embaraçoso, ou algo do gênero.

Alguns amigos o tinham por uma personalidade irascível, cuja necessidade de atacar alguém de quem não gostava, confrontar algo que o desagradasse e exercitar uma raiva incontida, nem sempre tinham destinações adequadas, nem motivações justificadas, o que, se não afetava a qualidade de seu texto, poderia comprometer os termos do que estava em pauta.

Brincava que em função disto acabaria sendo persona non grata para alguns amigos, achando que não seria mais convidado para encontros festivos, almoços de fim de semana, ou mesas de bar. Enfim, se enquanto jornalista pretendia não ter amigos, certamente sempre teve lado, o que aliás é consequente com as epistemologias mais respeitáveis quanto a vãs presunções de neutralidade, imparcialidade ou absoluta isenção, seja no jornalismo ou em qualquer outro campo dos negócios humanos. Este posicionamento, basicamente correto no âmbito social, político ou estrutural, não o livrava, inteiramente, de alguma eventual escorregadela, equívocos ou ambiguidades de trato em uma ou outra matéria ou reportagem, aliás, o que ocorre com qualquer jornalista.

O último churrasco.

Nas primeiras semanas de julho de 2017, Renan começou a divulgar entre seus amigos um convite para o “LAST CHURRAS.” Como escreveu, “Os amigos perguntam no inbox pq último churrasco. Explico meu medinho: vou p/operação difícil e biópsia ruim. Então, muita carne na parrilla! Vamos começar sábado perto do meio-dia, com braseiro aberto o dia todo, até anoitecer. BYOB, porque não posso saber o que cada um quer beber.  Animação e festa. Se tudo der errado, será um bom jeito de sair de cena… Se eu sobreviver, pagarei o mico! Bora churras! Duas ovelhas, pra começar!!!!

PS – Os fracos já escreveram: querem beringela, veggies, coisas light. Ok, haverá uma sessão de comidas mais suaves – do tipo que não dá câncer…”

Os amigos que reuniu em sua casa no Rio Vermelho (Red River, como no gracejo anticolonialista com o qual se referia ao bairro em que morava), para o que seria este último churrasco – se desse muito errado o procedimento médico a que iria se submeter -, eram alertados, em tom de gravidade jocosa de uma possível morte, que era devidamente encenada por Renan, ao circular com uma cruz improvisada, feita com gravetos recolhidos da grama, ao lado das dunas.

*Sociólogo. Professor aposentado na UFSC – Universidade Federal de S. Catarina