A música “roubada” que virou um dos maiores sucessos da história

Atualizado em 3 de dezembro de 2025 às 16:04
Dick Dale, guitarrista da surf music que ajudou a popularizar o clássico “Misirlou”

“Misirlou”, uma das músicas mais regravadas de todos os tempos, virou o hino da surf music quando o guitarrista Dick Dale lançou sua versão instrumental em 1962. Ele levou para a guitarra elétrica uma melodia que conhecia desde a infância, ligada à sua origem familiar libanesa. Anos depois, em 1994, essa mesma gravação reapareceu na abertura de Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, e foi aí que a faixa ganhou uma segunda vida, alcançando um público muito maior.

A história da música, porém, começa muito antes. Misirlou é uma canção de amor grega do fim dos anos 1920. Ela é atribuída a Michalis Patrinos e nasce dentro do rebetiko, estilo popular da região de Esmirna, no sudoeste da Turquia. O compasso também foge do padrão ocidental: é um 8/4 lento, de base grega, que mais tarde foi absorvido pela música árabe.

O significado do título é direto: “garota egípcia”. A palavra vem do árabe, em que “Misr” significa Egito. A primeira gravação conhecida de Misirlou é de 1927, pelo próprio Michalis Patrinos. A letra fala de um amor entre duas pessoas de crenças e origens diferentes: “Se eu não te levar comigo, vou enlouquecer. Ai, que eu te roube lá da terra dos árabes”.

Como a canção foi “roubada”

Em 1931, Patrinos foi a Nova York para regravar o tema ao lado de Tetos Demetriades. Em 1941, ela foi descoberta pelo greco-americano Nicholas Roubanis, que fez um arranjo instrumental de jazz e registrou Misirlou como se fosse composição sua. Como o crédito não foi contestado juridicamente, o nome dele continua aparecendo em muitos lançamentos comerciais, sobretudo fora da Grécia.

Paralelamente, a canção atravessou outras línguas. Também nos anos 40, o maestro libanês Clovis el-Hajj gravou uma versão em árabe chamada Ya Amal (“Minha Esperança”), adaptando a letra, mas mantendo a estrutura melódica inconfundível de Misirlou.

Nas décadas seguintes, letristas como Fred Wise, Milton Leeds e Bob Russell escreveram versões em inglês, o que abriu espaço para gravações de artistas populares, como Chubby Checker, que lançou seu cover em 1962 no álbum “Twistin’ Round the World”.

Mais tarde, a música também ganhou versões em iídiche e em francês, além de ter sido incorporada a repertórios de dança do ventre, casamentos judaicos e bandas que exploravam sonoridades “orientais” para o público ocidental.

É nesse cenário que entra Dick Dale. Filho de um libanês-americano, ele cresceu ouvindo escalas orientais e as transferiu para a guitarra elétrica. Ao adaptar Misirlou, acelerou o tempo, subiu a intensidade das palhetadas e a transformou em um rock instrumental. Sua versão de 1962 é o momento em que a canção deixa de ser só um tema tradicional do Mediterrâneo oriental para se tornar sinônimo de um estilo musical americano: a surf music.

Depois de Pulp Fiction, Misirlou passou a ser associada diretamente ao cinema. Em 2006, o grupo de hip-hop Black Eyed Peas usou o sample da gravação de Dick Dale no hit “Pump It”.

Misirlou também foi formalmente reconhecida como parte importante da cultura grega. Nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, o comitê organizador escolheu a canção como uma das mais influentes da história da música do país e ela foi apresentada na cerimônia de encerramento pela cantora Anna Vissi.

Hoje, a mesma melodia pode aparecer em versões para guitarra, orquestra, dança do ventre, klezmer e pop, sempre com algum traço que remete à “garota egípcia” do título.

A trajetória de Misirlou liga as cidades de Esmirna e Atenas às praias da Califórnia, passa por estúdios de jazz, festas da diáspora grega, Olimpíadas e filmes de Hollywood. O que Dick Dale fez foi pegar uma melodia que já tinha pelo menos três décadas de gravações e recolocá-la em outro contexto, sem apagar sua origem. É justamente esse caminho, da canção de amor rebetiko ao riff de surf rock, que ajuda a explicar por que Misirlou é um clássico atemporal e uma das músicas mais icônicas do século 20.

Davi Nogueira
Davi tem 25 anos, é editor e repórter do DCM, pesquisador do Datafolha e bacharel em sociologia pela FESPSP, além de guitarrista nas horas vagas.