A origem do termo “genocida” e por que ele se aplica a Bolsonaro. Por Marcos Danhoni

Atualizado em 21 de março de 2021 às 11:45
Bolsonaro imita pessoa com falta de ar em live

POR MARCOS DANHONI, professor titular da Universidade Estadual de Maringá e autor do livro “Lições da Escuridão”, entre outras obras

“Os membros dos batalhões policiais eram seres pensantes, dotados de faculdades morais, e não poderiam deixar de ter opinião sobre os assassinato em massa que perpetravam. Todavia, com total unanimidade, escolheram matar e prosseguir matando. Ao escolher não se eximir do genocídio, os alemães dos batalhões policiais indicaram que desejavam ser executores genocidas.”

[“Os Carrascos Voluntários de Hitler”, de Daniel Jonah Goldhagen. São Paulo: Cia das Letras, 1997]

Enquanto escrevo estas mal traçadas linhas o Brasil vai contabilizando cerca de 300 mil mortos atingidos diretamente velo vírus SARS-COV2, ou Covid-19, como é frequentemente chamado. Este número de óbitos coloca o Brasil à frente de todos os países onde grassa a epidemia.

Em breve, em números relativos (e, talvez, absolutos) ultrapassará os EUA. Hoje o Brasil contabiliza pouco mais de 13 milhões e 336 mil vacinados enquanto os EUA contabiliza 118 milhões e 314 mil pessoas vacinadas. O Brasil, em valores relativos, considerando uma população equivalente a dos EUA (330 milhões de pessoas), contabilizaria hoje 460.200 mortos (enquanto os EUA sepultaram 554.859 de seus cidadãos).

Os números de óbitos diários norte-americanos estão em queda porque cerca de 1/3 de sua população já recebeu uma ou duas doses das vacinas disponíveis (a Jansen e a Johnson necessitam só uma dose, diferentemente da Coronavac, Sputinik e AstraZeneca).

O que igualava Brasil e EUA, até início de 2020, era a presença de dois presidentes negacionistas que investiram seus potenciais políticos em fake news desacreditando a eficiência das vacinas, a necessidade de isolamento social, lockdown e uso de máscaras e álcool gel. No entanto, o povo norte-americano, com receio dos assustadores números de enfermos e óbitos em seu país resolveu cortar o mal pela raiz substituindo o presidente Donald Trump por Joe Biden.

No Brasil, infelizmente, vivemos ainda o segundo ano do mandato de Jair Messias Bolsonaro. Seu comportamento “errático” parecia, de início, uma cópia dos métodos trumpistas. No entanto, parece haver uma política deliberada de aniquilação de boa parcela da população brasileira mas, também, um “método na loucura”, levando certas contingências ao seu ápice como, p.ex., a falta de respiradores, de drogas para intubação, de oxigênio, para a dispensa de licitações e compras emergenciais supervalorizadas que oneram União e Estados.

Estas favorecem os conhecidos parasitas que rondam a máquina estatal para fazer dinheiro “fácil” que escorrem pelos conhecidos ralos da corrupção que assola o Planalto, especialmente em esquemas montados desde os golpes de 2016, com Michel Temer, e 2018, com Bolsonaro, alçado à presidência por ameaça militar, impulsionamento de fake news e uma mídia corporativa venal que só encontra paralelo naquela que apoiou o movimento militar golpista de 1964.

Além disso tudo, um espectro muito ruim ronda o desgoverno Bolsonaro: a possível política deliberada de genocídio de parcela da população brasileira. Infelizmente, este termo, genocídio, foi aventado e usado à exaustão pela imprensa alternativa e por advogados e juízes de uma parcela não contaminada do judiciário brasileiro.

Acabou ocorrendo, pois, em minha visão, uma desvalorização semântica do termo, esvaziando-o de seu caráter jurídico e necessário ao arbítrio internacional. Infelizmente, apesar de uma denúncia consistente no T.P.I. (Tribunal Penal Internacional) relativo à política etnocida de Bolsonaro contra os indígenas brasileiros, é necessário fazer prosperar uma denúncia de amplo espectro, incluindo aí a eliminação sistemática dos próprios indígenas, mas, também, de quilombolas, presidiários, sem-tetos e uma boa parcela de trabalhadores brasileiros.

Porém, para tanto, é necessário entender se os 300 mil mortos brasileiros são fruto de uma ação que visa o genocídio propriamente dito.

A primeira questão é entender o GENOCÍDIO como uma ação deliberada de um governo visando o massacre de pessoas indefesas em larga escala. O termo foi primeiramente aventado por um professor judeu, Raphael Lemkin, que fugiu da Polônia (primeiro país europeu a ser invadido militarmente pelas Forças Armadas de Adolf Hitler) em direção aos EUA.

O professor foi reconhecido com o Prêmio pelos Direitos Humanos no Mundo e pelas suas contribuições que levaram à criação do Tribunal Internacional para Crimes cometidos na Antiga Iugoslávia (ICTY, 1993) e do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR, 1994).

O Professor Lemkin encontra-se na gênese do conceito de genocídio, especialmente nos casos do Holocausto judeu (praticado sob o regime nazifascista) e outros casos de homicídio em massa e por motivos étnicos.

O genocídio na acepção lemkiniana não adota a destruição de uma Nação como premissa. A política do genocídio é parte integrante de ações múltiplas de um governo com objetivos de exterminar grupos políticos, sociais, culturais, étnicos, linguísticos, etc. Este extermínio além do assassinato em massa pode se caracterizar pela supressão deliberada da segurança pessoal dos grupos a serem atacados, da liberdade, da saúde e da dignidade do ser humano.

O primeiro uso público do termo GENOCÍDIO consta nos autos do Tribunal de Nuremberg, que julgou e condenou criminosos nazistas e na fundação das Nações Unidas em 1946. O conceito pertence a uma esfera transdisciplinar envolvendo diferentes áreas do conhecimento humano: Direito, História, Sociologia, Ciência Política.

Samantha Power, professora de Política Exterior Norte-Americana e Direitos Humanos da John F. Kennedy of Government da Universidade de Harvard, ganhou o Prêmio Pulitzer por sua obra A Problem from Hell: America and de Age of Genocide. Power conta a história de Lemkin e ilustra os vários episódios de genocídio: dos armênios à Shoah, ou holocausto judeu, até a política deliberada do governo norte-americano na invasão do Iraque e no massacre das populações civis.

Trazendo à nossa contemporaneidade Lemkin e Power, devemos relembrar que a necropolítica de Bolsonaro atacou todas as possibilidades de um governo civil e democraticamente eleito de preservar sua população do contágio e da possibilidade real de morte causada pela pandemia do Coronavírus.

Contra Bolsonaro, temos as seguintes “provas de acusação”:

– não reconhecimento inicial da situação pandêmica, negando os informes oficiais da OMS, da OPAS e das Instituições Públicas de Saúde no país (ANVISA, SUS, Instituto Butantã, FIOCRUZ);

– intensa propagação de fake News e números subestimados que acabou resultando numa negação de boa parte da população das medidas preventivas a serem tomadas;

– negação às populações indígenas e quilombolas de acesso a água potável em situação de pandemia;

– estímulo a um “tratamento precoce” composto por drogas ineficazes (hidroxicloroquina, ivermectina, Anitta) e potencialmente perigosas para pessoas que sequer apresentavam sintomas da covid-19;

– desestímulo ao uso de máscaras;

– atraso na compra de equipamentos médicos, especialmente respiradores e oxigênio (cilindros e gás);

– bombardeamento às políticas implementadas por governadores e prefeitos de lockdown para diminuir a pressão sobre a oferta de UTIs em diferentes regiões do país;

– adoção de discurso anti-vacina e ideologização das vacinas, especialmente as desenvolvidas na China e Russia;

– atraso na compra de medicamentos necessários ao processo de intubação de pacientes;

– atraso na aquisição de direitos de compra de vacinas, da Pfizer à Coronavac, inviabilizando um amplo espectro de possibilidades de uma vacinação rápida e eficaz como havia ocorrido no governo Dilma com 80 milhões de pessoas vacinadas em 3 meses contra o vírus H1N1.

Este rol de situações de necropolítica caracterizam ações deliberadas que podem sim, ser taxadas de GENOCÍDIO e devem ser denunciadas ao TPI junto com a ação que já corre sobre os indígenas brasileiros.

Lemkin deve ser o horizonte da denúncia, porque está nele, a gênese da compreensão de sistemas liderados por sociopatas que impõem às suas populações a aniquilação física, social e cultural. Lemkin diz:

– o candidato a genocida representa uma série ameaça à vida, à liberdade, à saúde e à sobrevivência econômica de um povo ou de uma parcela de sua população;

– as responsabilidades criminais devem recair   sobre os indivíduos que deram as ordens e àqueles que as executaram;

– não pode haver por parte dos acusados e seus cúmplices a desculpa de que agiram de acordo com as leis de seu país, uma vez que a manipulação jurídica encontra-se na raiz dos atos que conduziram, inexoravelmente, ao genocídio;

– como as consequências da política que conduziram ao genocídio ganha uma dimensão internacional, a repressão ao homicídio qualificado em massa deverá ser organizada internacionalmente, incluindo a prisão de seus autores em qualquer país em que tenham sido detidos, e, quando necessário (e possível), a extradição para a corte internacional (uma vez que seus tribunais estão eivados da necropolítica que conduziu ao crime hediondo);

Os fatos que conduziram aos julgamentos de Nuremberg, à punição dos crimes étnicos na ex-Iugoslávia e em Ruanda deixaram como saldo um tribunal que observa, julga e pune governantes assassinos e seus asseclas, determinando diretamente uma possibilidade mínima a um povo que, por alguma contingência, holocausto, pandemia ou repressão aviltante, deixou de oferecer resistência ao seu próprio holocausto.