A parábola feminina do Jesus da Mangueira. Por Álvaro Caldas

Atualizado em 27 de fevereiro de 2020 às 14:50

Publicado no Ultrajano

Mangueira traz Jesus Cristo jovem, negro e morador de favela – Gabriel Nascimento/Riotur/Fotos Públicas

POR ÁLVARO CALDAS

“Jesus estava sem dinheiro e sem documentos. Assim como se fosse um sambista da velha guarda, como Ismael Silva. Homem tímido, ficou desnorteado, sem saber por onde começar. A grandeza das instalações e a gritaria que vinha dos camarotes e arquibancadas o intimidaram. Seria algo como o Coliseu Romano? Desceu para a passarela”

A Mangueira é muito grande, diz o título de um samba do Cartola. Isso era quase tudo o que Jesus Cristo sabia quando chegou ao Sambódromo no último domingo, primeiro dia do desfile das escolas de samba do Grupo Especial. Veio sozinho, desceu de um Uber na Marquês de Sapucaí. Estava fantasiado com uma túnica árabe, usando na cabeça o tradicional lenço palestino keffiyeh, imitando a figura de Yasser Arafat. Viu-se diante de um amontoado de pessoas fechando os portões de entrada. Sem credencial, testou seus poderes e pulou para dentro, passando por cima dos seguranças e catracas.

Jesus estava curioso para conferir essa história de que iria desfilar no alto de um carro alegórico. Que seria preso e torturado, perseguido pelos profetas da intolerância. Que a multidão o veria com o rosto negro, sangue de índio e corpo de mulher, um moleque nascido no buraco da favela, o chamado Jesus da gente. Para crer em todas essas fantasias, precisava ver com os próprios olhos, como disse São Tomé.

Anjos de seu terreiro haviam lhe segredado algumas dicas. Que esse pessoal das escolas de samba era dotado de colossal imaginação. Que o carnaval do Rio era uma manifestação popular que deixava o de Veneza a léguas de distância. A maior festa cultural do país. Que a democracia no Brasil balançava numa corda bamba, passando um momento de perigo com risco de ter um governo autoritário militar-evangélico, suprimindo as liberdades públicas. Como podia acontecer isso de novo?, pensou o profeta, lembrando-se de 1964. Algo sobrenatural deve ter ocorrido.

Ficou perplexo. Mas havia mais. Advertiram-lhe que se preparasse contra atos de intolerância e violência. Policiais e milicianos civis, protegidos pelo governo, espancavam e muitas vezes faziam desaparecer as pessoas, em sua maioria negros. Gente daquela massa de oprimidos e párias, nascidos nos confins dos subúrbios e no alto dos morros. Na avenida, o Cristo da ressureição poderia conferir, essas pessoas se esbaldam com uma feérica alegria e abrem um sorriso contagiante, mostrando os dentes alvos.

Jesus estava sem dinheiro e sem documentos. Assim como se fosse um sambista da velha guarda, como Ismael Silva. Homem tímido, ficou desnorteado, sem saber por onde começar. A grandeza das instalações e a gritaria que vinha dos camarotes e arquibancadas o intimidaram. Seria algo como o Coliseu Romano? Desceu para a passarela. Havia anotado no celular o nome de uma sambista da Mangueira, uma das autoras do samba-enredo da escola, Manu da Cuíca. Uma moça morena, compositora da narrativa poética que transformou sua figura histórica em personagem do desfile, recitando os versos em primeira pessoa.

Tudo ali respirava a Mangueira. A notícia de que a Estação Primeira tivera a audácia de criar um Cristo mulher no meio de uma apoteose o inquietara desde o início. Conhecia algumas lendas a respeito de um compositor chamado Cartola. Desejava conhecê-lo melhor. O cara era um poeta, andava com outro de nome Carlos Cachaça, formavam um grupo afinado do qual participavam o Nélson Sargento, o Elton Medeiros e outro que estava sempre de porre e tinha uma voz rouca, o Nélson Cavaquinho.

Compunham belíssimas canções. Já tinha ouvido algumas em recitais nos jardins do Céu, com a participação da banda Galo Preto. Jamais iria se esquecer de O sol nasceráAs rosas não falam e, sobretudo, Acontece. Por isso mesmo, Jesus punha muita fé no desfile desta escola, sabedor de que a Mangueira é muito grande. De repente, ouviu alguém gritar “Jesus” e Manu surgiu a sua frente. Foi logo tascando um beijinho em seu rosto. Sem ser carioca, Jesus ofereceu o outro lado da face.

“Por que tanto brilho e tanto luxo, Manu?”, indagou o viajante, com o primeiro Jesus já na passarela levando bordoadas dos policiais. “Foi um sonho”, disse ela. Fala-se tanto em Cristo, que fizemos a pergunta: “Onde estaria ele hoje?” Teria nascido pobre no buraco quente da Mangueira, sofrendo da mesma violência com que o Estado trata os jovens moradores de favela? Cristo lutou pela inclusão e deu sentido à palavra irmãos. Usamos sua ideia de fraternidade e de partilha para dar ao samba esta visão de pertencimento.

“Minha melhor recompensa é ver que teus olhos brilham”, disse a voz de Jesus, acenando com as mãos para a bailarina que se exibia na frente da bateria. “Ninguém duvida da força política do carnaval”, falou Manu. “Ele expressa tensões, contradições e alegrias. Há deboche e ironia, de uma maneira anárquica e subversiva. Sou foliã, gosto de sair fantasiada, com a cuíca na mão, girar pelos blocos. Ouça só: Mangueira/ teu samba é uma reza/ Pela força que ele tem/ Mangueira/ vão te inventar mil pecados/ Mas eu estou do teu lado/ E do lado do samba também

“Já me tornei um mangueirense. Os anjos me disseram que a terra que habitamos é um erro, uma paródia. Caminhei pelo deserto na juventude, vi injustiças, passei por muralhas de fogo”, disse o homem fantasiado de palestino. “Devo lhe prevenir que um povo que esquece sua história está condenado a repeti-la. A história de seu povo, Manu da Cuíca, passou pela escravidão, o racismo, a corrupção, as ditaduras. Vive um momento de intolerância. A guarda palaciana amotinada no palácio prepara um golpe convocado pelo presidente.” Manu disse que a hora era de resistência. Apressada, querendo retornar ao desfile, beijou a face de Cristo.

“Mas escuta, mulher. Antes que eu desapareça, uma coisa vos digo: o que mais gostei nesta madrugada foi ter vivido uma experiência vital. A transformação que me fez passar por uma mulher, desfilar na pele de uma rainha que arrebatou a avenida. Pude sentir que o êxito do carnaval depende do suor e do calor que os corpos das mulheres irradiam. A fama do homem está perto do fim. E a parábola que lanço agora é a de que o universo é feminino e as mulheres constituem o verdadeiro sal da terra.”

Passava 30 minutos do novo dia quando Jesus fez um aceno para o alto e retirou-se sem ser percebido. Sentiu-se feliz por ter passado uma noite de esplendor no meio daquela gente.