
Durante toda a semana, diplomatas, analistas, jornalistas e palpiteiros curiosos, como eu, se ocuparam da antes improvável, hoje muito provável, reunião entre Lula e Trump, à margem da 47ª Cúpula da ASEAN, em Kuala Lumpur. À mesa, que no protocolo se chamará “encontro bilateral”, serão servidos dois únicos pratos.
O Brasil busca o fim das taxações que encarecem suas exportações; os Estados Unidos, como de costume, pretendem conter a influência chinesa sobre o continente sul-americano — e, para isso, veem o Brasil como o troféu que ainda lhes falta na cristaleira da hegemonia.É um banquete diplomático de sabor indigesto: um presidente que carrega consigo a esperança de um país inteiro frente a um alaranjado em decomposição, que há muito habita mundo seu, só seu.
Trump chega à Malásia em estado avançado de desvario político; parece ter decidido disputar com sua própria caricatura o posto de seu maior inimigo. Apenas na última semana, o ancião alaranjado, vivendo o auge de sua puberdade tardia, publicou vídeos gerados por inteligência artificial em que, em delírio, encimado por uma coroa dourada adornando o parco cabelo alaranjado, sobrevoa protestos contra ele e lança sacos de fezes sobre manifestantes; autorizou a CIA a derrubar Nicolás Maduro; ensaia repetir o gesto com Gustavo Petro; e ainda enviou vinte bilhões de dólares ao governo Milei — não por filantropia, mas por cálculo eleitoral.
Cínico, mandou um ex-funcionário mentir no Senado norte-americano, dizendo que Lula teria financiado sua campanha com dinheiro do narcotráfico enviado por Maduro. Tudo isso em apenas uma semana. E, como toque final, indultou uma série de comparsas, entre eles o brasileiro George Santos — a prova viva de que o grotesco, nos Estados Unidos, pode ser premiado com pompa oficial.
Trump é um criminoso reincidente, condenado em dois processos e réu em outros três. Num país que levasse a sério as lições que prega, ele estaria atrás das grades. Mas a nação que se autodenomina guardiã da democracia mantém um delinquente assentado no Salão Oval e ainda o chama de “senhor presidente”. É um paradoxo que só parece escandalizar quem ainda acredita que a moralidade e a política convivem na mesma casa.

Lula, por dever de Estado, não tem o luxo da repulsa. Precisa dialogar com esse homem. O interesse nacional obriga-o a enfrentar um interlocutor que usa a mentira como método e o caos como instrumento. É um exercício de equilíbrio raro: manter o olhar sereno diante de quem enxerga o mundo como uma mesa de cassino, onde cada olhar é monitorado, cada gesto é uma barganha e cada palavra, uma ameaça.
O problema, contudo, não está apenas além-mar. Dentro de casa, o presidente brasileiro enfrenta os endinheirados com aspirações coloniais — gente que troca soberania por convites a jantares em Washington e se considera cosmopolita por repetir, em inglês de aeroporto, os mantras de Wall Street ou, de cor, as quarenta e oito leis de Napoleão Hill. Esses aliados internos de Trump, de aparência tosca, mas bolsos fartos, trabalham com afinco para sabotar o governo e devolver o país ao seu papel preferido: o de fazenda rentável do império. Com Bolsonaro, com PCC, com tudo!
Ao mesmo tempo, o braço digital do trumpismo cumpre sua parte. As big techs — grandes plataformas de escravização —, sempre tão zelosas da “liberdade de expressão”, cedem palco e megafone à desinformação. Espalham-se boatos de que Lula teria sido financiado por cartéis, de que o Brasil se alinha a ditaduras e ameaça a “democracia ocidental”. Nada disso precisa de provas: basta o algoritmo certo, alguns perfis falsos, uma centena de robôs bem calibrados e a complacência conveniente dos que lucram com o escândalo. A fábrica de fantasmas trabalha em três turnos.
Diante desse cenário, a reunião em Kuala Lumpur assume um peso que transcende a diplomacia. Não será um encontro entre dois presidentes, mas um duelo simbólico entre projetos antagônicos de mundo. De um lado, a defesa da soberania e da cooperação; de outro, o espetáculo da força e do medo. Trump representa o império em sua fase tardia — ruidoso, vulgar e perigoso. É o ruído que precede a queda. Lula, com todas as dificuldades e limitações que o cargo impõe, encarna a obstinada tentativa de existir com dignidade num planeta que insiste em medir valor por obediência.
Agenda de Donald Trump na Malásia não tem encontro com Lula. pic.twitter.com/DDrnefgwTX
— Thais (@thaispsic) October 23, 2025
A América Latina volta a ser terreno de disputa. Os métodos são antigos, mas ainda eficazes: campanhas de desestabilização, lawfare, chantagem econômica e sabotagem midiática. O Brasil é a peça-chave desse tabuleiro. Se ceder, o continente inteiro retrocede. E é por isso que o encontro entre os dois líderes adquire contornos de narrativa épica — ou, para usarmos uma metáfora mais nacional, de cordel.
A literatura popular brasileira sempre soube descrever o confronto entre o pequeno e o poderoso com mais precisão que os tratados de geopolítica. Em “O Matuto e o Coronel”, Leandro Gomes de Barros mostra como a astúcia e a palavra vencem o autoritarismo.
Em “A Peleja de Manoel Riachão com o Diabo”, Firmino Teixeira do Amaral transforma o duelo entre o homem simples e o próprio demônio em alegoria da inteligência popular. Lula, diante de Trump, é um pouco desses dois personagens: o matuto diante do coronel, o camponês frente ao diabo. Precisa vencer com paciência, ironia e firmeza — virtudes que raramente produzem manchetes, mas às vezes mudam o curso da história.
O desfecho do encontro não se medirá em declarações à imprensa. O verdadeiro resultado estará no modo como o Brasil sairá da sala: altivo ou submisso.
Se Lula conseguir afirmar o interesse nacional sem se deixar capturar pela retórica agressiva do magnata, terá feito mais do que cumprir uma agenda internacional. Terá reafirmado o direito do país de existir como sujeito e não como extensão de um império cansado.
A mídia corporativa, previsivelmente, tentará diluir o episódio em neutralidade burocrática. Dirá que os líderes trocaram cortesias, que “o diálogo foi produtivo”, que “o tom foi amistoso”. Mas, sob o verniz diplomático, esconde-se o que de fato está em jogo: uma disputa moral e histórica entre o Brasil que quer decidir seu próprio destino e o poder que não tolera autonomia alheia.
Trump representa a arrogância que se alimenta da subserviência. Lula carrega sobre os ombros a esperança de milhões que ainda acreditam que dignidade nacional não é artigo de exportação.
Entre um e outro, há mais do que divergência política: há a fronteira entre o cinismo e a responsabilidade, entre o delírio e a razão.
Se, ao fim da reunião, o presidente brasileiro conseguir preservar essa linha tênue — firme sem ser hostil, estratégico sem ser servil — terá vencido. E sua vitória, como nas melhores histórias do sertão, não se medirá em aplausos, mas no silêncio respeitoso que segue as palavras bem ditas.
Observando Lula desde os tempos do sindicato de São Bernardo, tenho comigo que, quando as luzes do salão de Kuala Lumpur se apagarem e os repórteres recolherem seus microfones, restará apenas a lembrança de uma velha lição: o diabo, por mais ruidoso que seja, sempre teme quem o enfrenta com calma, ironia e razão.