A pirataria, a meia-entrada e a ilusão do almoço grátis

 

O comunismo puro, tal como a anarquia ideal, requerem alta dose de responsabilidade de todos os envolvidos. Não são sistemas concebidos para que ninguém trabalhe e todos se beneficiem do… nada; são para que todos trabalhem e todos se beneficiem do que foi produzido.

Menciono isso porque há uma sensação por parte de muitos consumidores de pirataria de que eles estão fazendo algo justo, contribuindo para um certo “comunismo” da cultura e da informação através da pirataria. E eu não questiono se a cultura deve ou não ser tratada de forma mais comunista. Apenas, se for, não será através da pirataria.

A questão é simples: custos não diminuem só por quê você resolveu fazer uma cópia. Pense na cadeia resumida de produção de um filme, por exemplo: você tem do diretor, do ator, do contra-regra, até o cara que desenvolve a tecnologia da câmera, o cara que trabalha na fábrica da luz, o cara que cata na rua o plástico que será reciclado e transformado numa peça do pedestal que segura o microfone.

Todas essas pessoas têm que comer. Todas elas têm que levar seus filhos à escola, cuidar de suas mães, pagar o funeral de seus pais. Mas estamos chegando em um ponto meio piegas. Sigamos objetivos para não perder o foco.

Digamos, então, que a pirataria seja o futuro. Bem, se for, em algum momento o custo das produções vai ser maior do que a receita (em muitos casos, já é), porque ninguém mais estará pagando . O que se faz nesse caso? Pára-se a produção. Ou, no mínimo, diminui-se o custo – o que na grande maioria dos casos (não em todos) diminui a qualidade.

Bem, se a produção parar, essas pessoas todas da cadeia vão perder seus trabalhos. Não, não é o fim do mundo, é adequação – a mesma do cara que perdeu seu emprego de acendedor de lampiões em postes de rua quando veio a luz elétrica. Encontra-se outro trabalho. Mas elas vão deixar de trabalhar para a cultura. Cada vez menos gente vai trabalhar para a cultura. E quando a pirataria tomar todo o mercado, o que ela vai distribuir, com toda a justiça social que prega é… nada. Porque não haverá produção. Você terá, basicamente, filmes amadores para assistir.

Piratear não é comunista nem anarquista. É egoísta. A atitude mais comunista possível seria pagar e, assim, contribuir comunitariamente para a produção.

Hoje, a única área artística impirateável é a de apresentações ao vivo. Essa área gera grande parte do trabalho da área, ainda que indiretamente. É, por exemplo, um artista que paga por um estúdio, um vídeo-clipe, uma equipe de produção, porque sabe que o dinheiro volta em shows. Outra área que mantém os profissionais de cultura é a publicidade, mas isso outro assunto.

Os shows me permitem abrir um paralelo interessante: o da meia-entrada.

Não existe meia-entrada. Existe a entrada e a entrada-que-custa-o-dobro. É que a meia-entrada não faz absolutamente nada senão aumentar o ingresso de quem paga a inteira.

Da mesma forma que no outro caso, os custos de produção não diminuem. Você não paga meio cachê para o Steve Wonder porque vende o ingresso por metade do preço. Não compra meio microfone. Não aluga meia casa de show. Assim, na conta do produtor, ele tem que aumentar o ingresso para poder viabilizar.

No fim das contas, a meia-entrada é o preço que já seria o ingresso normal. E só uns trouxas (eu) pagam o dobro.

Agora, se estamos pensando em justiça social, vou parafrasear Cristovam Buarque, porque me parece que há uma forma mais interessante e justa de se conseguir arte de graça: comecemos distribuindo o essencial, a comida. O pessoal que trabalha na lavoura não vai precisar de dinheiro, porque os próximos a serem gratuitos serão escolas, hospitais, polícia gratuita. O trabalho dos pedreiros também é bom que seja de graça, porque eles cuidam dos nossos telhados, tal como todos os que produzem materiais de construção. Fabricantes de cadernos, livros, computadores, poderiam distribuir seus produtos livremente para as nossas crianças, adultos e velhos. Exploradores de petróleo, gás, energia elétrica também poderiam fazer sua distribuição sem custo – claro, se as pessoas que trabalharem não cobrarem por isso.

Eu conheço bem a classe artística. Embora você só precise de artistas depois de se preocupar com tudo isso, se começasse por aí, tenho certeza que não precisaria chegar nem na metade da história para que nós começássemos a trabalhar de graça e levar cultura grátis a todos.

Mas enquanto a gente tem que pagar pela comida…

Ruivo

Emir Ruivo é músico e produtor formado em Projeto Para Indústria Fonográfica na Point Blank London. Produziu algumas dezenas de álbuns e algumas centenas de singles. Com sua banda, Aurélios, possui dois álbuns lançados pela gravadora Atração. Seu último trabalho pode ser visto no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=dFjmeJKiaWQ

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