A privatização do saneamento: “Brazil” na contra-mão do mundo

Atualizado em 27 de junho de 2020 às 14:17
A represa Jaguari, que integra o Sistema Cantareira

PUBLICADO NO PORTAL VERMELHO

Os liberais brasileiros são figuras estranhas. Defendem galhardamente o afastamento do Estado da economia, mas exigem que esse mesmo Estado lhe dê privilégios para que eles possam ter “garantias de mercado”. Ora, se você precisa de Estado para garantir seu lucro, onde fica a tal “mão invisível”? A ladainha da relação entre oferta e procura, válida para as empresas ajustarem seus preços de venda, não tem sustentação numa economia globalizada e controlada por grandes conglomerados. Portanto os liberais são, a princípio, apenas saudositas de um capitalismo que só existiu nas duas décadas após o seu surgimento.

Não é de se estranhar, portanto que a aprovação de um novo Marco Regulátório do Saneamento Básico, que ocorreu, na quarta-feira (24), no Senado Federal, por 65 votos a 13, foi festejado pelos que defendem o enfraquecimento do setor público. O novo marco legal do saneamento, permite abrir caminho para o domínio de empresas privadas no setor. Registre-se que na Europa, desde 2015, ocorreram mais de 280 reestatizações dos sistemas de abastecimento, devido as fragilidades identificadas nas gestões privadas desse fundamental bem público.

Em março de 2019 foi publicada uma pesquisa feita pela Transnational Institute-TNI, centro de estudos em democracia e sustentabilidade baseado na Holanda, que revelou ter havido 835 municipalizações (onde os serviços são dirigidos pelos municípios) e 49 nacionalizações (quando o sistema é operado pelo governo central), decorrente da incompatibilidade entre a exigência da população e dos interesses da iniciativa privada. Observar esses números pode ajudar a entender o que se quer com a privatização do sistema de saneamento básico.

Quando um serviço público é vendido ou concedido para o setor privado, a empresa prioriza o lucro de curto prazo. O resultado são aumentos expressivos, que tornam os serviços inacessíveis para as famílias mais pobres, além de falta de investimentos em infraestrutura, deterioração das condições de trabalho e custos mais altos para as autoridades locais, que, muitas vezes, têm que complementar os gastos quando a companhia privada falha na entrega. Isso não é uma fábula, é o retrato do que aconteceu em todo o mundo.

Isso decorre porque um bem público envolve uma oferta universal, não localizada em nenhum segmento específico, e essa universalização só é possível num médio e longo prazo, com um custo relativamente alto, sem a garantia de um retorno lucrativo. Acrescente-se isso ao fato de que quando se fala em saneamento básico não se remete só ao sistema de distribuição de águas. Na verdade, saneamento básico é um conjunto de serviços compreendidos como: distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana e coleta de resíduos sólidos.

Mas o que muda de fato? Com a nova lei, umas das mudanças mais significativas é a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos. Passa a ser obrigatória a abertura de licitação, o que implementa a competição do acesso aos contratos e a inserção massiva de empresas privadas, em detrimento das empresas estatais nos estados, que atendem 70% da população.

E qual o impacto que essa nova regulamentação no “cidadão comum”? A tendência natural é o aumento imediato das tarifas e o surgimento de conflitos entre os interesses da empresa privada e o da população e a ameaça de que setores mais pobres da população, assim como as cidades menores, sofram os impactos de uma provável mudança de “política de saneamento básico”.

Não se deve cometer o erro primário de achar que água é um produto como outro qualquer. A água tem o caráter público devido ao seu alcance universal e dissolver o sistema de saneamento público em prol de uma empresa privada, pode gerar um novo tipo de desequilíbrio de alcance de um bem de natureza pública.

Sabe-se que para cada R$ 1 investido em saneamento básico são R$ 4 que se deixa gastar em doenças oriundas da falta das condições sanitárias boas, e por isso mesmo é fundamental investimentos no sistema como um todo, o que exige uma forte participação do setor público, pois ele é o único ente capaz de estabelecer metas de longo prazo e criar recursos para a realização desses investimentos sem necessariamente tornar a água uma mercadoria como outra qualquer.