A Revolução dos Milicos e a Ditadura do País Real. Por Ricardo Miranda

Atualizado em 31 de março de 2019 às 14:44
Castelo Branco e os militares

Publicado originalmente no site A confeitaria política de Gilberto Pão Doce

POR RICARDO MIRANDA, jornalista

“Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
(..) Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão
(…) Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão”.
Geraldo Vandré

Não podia deixar passar 31 de Março de 1964 – embora o golpe tenha vindo de fato no Dia da Mentira, 1º de abril – especialmente neste momento em que as vivandeiras alvoroçadas, para usar uma expressão do ditador marechal Humberto Castello Branco, querem voltar  a comemorar a data. Que é mais ou menos como fazer um batizado no Dia dos Mortos. E o Dia dos Fiéis Defuntos virou o Dia de Todos os Santos. Hoje visto preto, mas poderia vestir uma alegre camisa havaiana. O escracho seria o mesmo. Por que não havia nada mais previsível que o presidente que nega os 21 anos de ditadura, que pisa sobre os corpos dos mortos e desaparecidos políticos, que acende velas para torturadores – carrascos do choque elétrico, pau-de-arara e afogamento -, tentasse transformar   o 31 de Março no novo 7 de Setembro. É o raciocínio de um lunático. E a estratégia de um homem que, num looping histórico, saltou de um mandato vazio para o cargo mais importante da República e agora cava com palavras e ações seu próprio desterro, numa cova da história – o que tardará menos do que esperam os salteadores dos sonhos do povo.

Jair Bolsonaro nem está no Brasil, com sua camisa verde e amarela – como cada vez em menor número são os bolsominions de raiz, raça em extinção atingida por uma epidemia coletiva de vergonha. Já que autocrítica é vacina em falta. Está em Israel namorando Benjamin Netanyahu, tripudiando sobre o sangue palestino e árabe, numa verdadeira violação da lei internacional, como tripudia sobre o dos brasileiros que lutaram contra a ditadura. A Palestina é o novo Araguaia. Tanques israelenses atacaram bases militares do Hamas na noite deste sábado. Sirenes dispararem no sul de Israel. Que simbologia para esse 31 de março, do Congresso sitiado por tanques, dos políticos cassados, dos artistas exilados, dos livros queimados, jogando fumaça negra para os porões que se abririam, as torturas que viriam com o patrocínio do Estado, as Operações Condor, multinacionais do crime político, as perseguições que tornariam rotina o medo, até que passou.

Na Justiça, uma triste disputa vencida pela Advocacia-Geral da União, que a essa altura tem o peso de nada, suspendeu a determinação da Vara Federal do Distrito Federal para que a União se abstivesse de promover uma mensagem oficial em alusão ao dia 31 de março de 1964. Uma comenda militar urgente para a liminar da desembargadora de plantão, Maria do Carmo Cardoso. Ela provavelmente também aprovaria o oficio de fevereiro de 1971, enviado a prefeitos em plena ditadura, detalhando ordem do general Garrastazu Médici para que celebrassem o 31 de Março, nem que fosse inaugurando obras – como revelou o Correio Braziliense. Que Maria do Carmo nunca viva em um país que executa a tortura ou desapareça com militantes políticos. Comemorem, ignorantes! Soltem fogos, covardes! A maioria, o povo, os tem sob a mira telescópica da verdade.

Ao recomendar a comemoração, ou “rememoração”, do golpe militar de 1º de abril e a revisão histórica do que um grupo de milicos muito doentes chama de “revolução democrática de 31 de Março” – incluindo, tristemente, a nata dos generais da ativa que cercam o Planalto, escravos de sua própria doutrinação -, um autêntico ensaio sobre a cegueira, Bolsonaro coloca o País, como o fez durante a campanha, em um confronto político. Mas não são mais os antipetistas versus os petistas. São os democratas contra os defensores da ditadura. Foi esse nível de exumação histórica que Bolsonaro percorreu, desautorizando as memórias póstumas de seu povo e soterrando os conceitos democráticos mais elementares.

Mais que atiçar brasileiros contra brasileiros, ele tenta recontar a história, criar uma narrativa surreal que não frequenta a lógica, milhares de depoimentos de sobreviventes, ou os livros de história, transformando ditaduras sanguinárias, como do Brasil, do Chile e do Paraguai, em passeios por cemitérios, relativizando o conceito de violência e tortura e enforcando a democracia em uma sala pequena com pé direito baixo. Como já disse Bolsonaro sobre a morte de Vladimir Herzog, barbaramente torturado até a morte, em poder de autoridades militares do DOI/Codi, em São Paulo, “suicídios acontecem”. Mal sabe Bolsonaro que quem se suicida diariamente é ele, figura tosca que um dia será reconhecida como merece, no rodapé onde confabulam os medíocres enquanto os verdadeiros heróis fazem história.

Volto meus olhos agora para outro domingo, dia 7, quando Lula completará um ano preso num espaço de 15 m² no quarto andar da Superintendência da PF em Curitiba – mas com antena parabólica para o coração de milhões e milhões de brasileiros. Mesmo preso e impedido de dar entrevista por decisões judiciais, Lula não abandonou a política, nem a política o abandona. Como narrou a Folha de S.Paulo, em reportagem hoje, informa-se sobre cada passo do governo Bolsonaro e avalia como real o risco de o presidente ter o tapete puxado pelos próprios militares do governo. O mundo dá muitas voltas mesmo. Bolsonaro está preso no subsolo de 31 de Março de 1964 e Lula nunca este mais livre, há 365 dias passeando todos os dias em nossa memória e em nossos desejos de um país novo, diferente, melhor, democrático.