A sociedade e os grandes criminosos segundo Balzac. Por Camila Nogueira

Atualizado em 4 de julho de 2015 às 19:43

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Balzac é Balzac. Sendo assim, é compreensível que tenha sido convocado, mais uma vez, pelo Diário para a série “Conversas com Escritores Mortos”. As frases abaixo foram extraídas do livro “Código dos homens honestos”.

Monsieur de Balzac, o senhor é considerado um dos maiores romancistas de todos os tempos – e também é conhecido por ter criado personagens excelentes. Cá entre nós, Vautrin é meu favorito. O que tem a dizer sobre ele?

Vautrin descende de Adão por essa linha que o diabo continuou assoprando fogo cuja primeira faísca foi lançada sobre Eva. Quando Deus quer, esses seres extraordinários e malévolos são Moisés, Átila, Carlos Magno ou Napoleão; mas, quando ele deixa no fundo do oceano toda uma geração desses instrumentos gigantescos, se tornam algo semelhante a Pugatcheff, Robespierre, Louvel ou o padre Carlos Herrera [Vautrin]. Dotados de um poder imenso sobre as almas tênues, eles as atraem e as esmagam. Em poucas palavras, Vautrin é uma estatueta do mal e da corrupção, que, no bom caminho, teria sido mais do que Cardeal Ximenes e mais do que Richelieu.

Isso quer dizer que o senhor o desaprova?

É claro que não. Os ladrões constituem uma classe especial da sociedade; contribuem para o movimento da ordem social; são o lubrificante das engrenagens e, como o ar, penetram em qualquer lugar; os ladrões são uma nação à parte, no interior da nação.

Estou confusa. Então o senhor aprova os ladrões?

Acho que é necessário, antes de tentar desvendar as astúcias dos ladrões, tecer sobre eles algumas considerações imparciais; talvez ninguém mais possa analisá-los sob todos os ângulos e com total sangue-frio. Mas certamente não serei acusado de querer defendê-los, pois isso seria bem injusto. Não posso defender aqueles que podem, a qualquer momento, me roubar.

E quais seriam suas considerações imparciais?

O ladrão é um ser raro; a natureza o concebeu como uma criança mimada e despejou sobre ele toda sorte de perfeições: um sangue frio imperturbável, uma audácia a toda prova, a arte de aproveitar o momento exato, tão fugaz e tão lento, a agilidade, a coragem, uma boa constituição física, olhos penetrantes, mãos ágeis, fisionomia aberta e expressiva, todas estas qualidades não são nada para um ladrão e, no entanto, são consideradas como a soma das capacidades de um Aníbal, de uma Catarina, de um Mário, de um César.

Nem todos os ladrões são audaciosos, corajosos e atraentes. Podemos dizer, então, que não estamos falando de todos os criminosos, e sim dos mais notáveis entre eles?

É claro que sim. Há uma grande diferença entre um ladrãozinho qualquer e um criminoso célebre. O pequeno roubo é, mais exatamente, o seminário onde se recruta para o crime, e os ladrões de galinha não passam de maus atiradores do grande exército dos profissionais sem patente.

Há alguma diferença crucial entre eles?

O ladrão banal irá roubar sua carteira e sair correndo; o grande criminoso não se contenta com isso – seus métodos são sofisticados e elegantes, seu lucro é maior.

Basta ao grande criminoso ter uma boa fisionomia, audácia, sedução e sangue-frio? Não é preciso que tenha um conhecimento da natureza humana, por exemplo?

Ele deve conhecer os homens, seu temperamento, suas paixões; tem que mentir com grande habilidade, prever os acontecimentos, avaliar o futuro, ser dono de um espírito ágil e agudo; tem que ter um raciocínio rápido, encontrar boas saídas, ser um bom comediante, bom mímico; tem que saber captar o tom e as maneiras das diversas classes sociais (imitar o funcionário, o banqueiro e o general, conhecer seus hábitos e suas características). E, acima de tudo, tem que ter imaginação, uma brilhante imaginação. Ele não é forçado a estar sempre inventando novos recursos? Para o ladrão, o fracasso equivale a uma condenação.

Monsieur de Balzac, levando em conta tudo o que o senhor disse, tais criminosos são criaturas fora do comum, a quem pouco falta para ser grandes bomens. Por que não enveredaram por outros caminhos, se são tão capazes? O que impediu que tal coisa acontecesse?

É uma questão muito difícil, minha jovem. O resultado de dons tão excepcionais é, em geral, uma propensão à indolência. Entre o objeto cobiçado e a posse, não veem mais nada, entregam-se felizes ao mal, nele se instalam, a ele se habituam.

Como podemos reconhecer os grandes criminosos?

Nunca desconfie de seu vizinho da esqueda, que usa uma camisa de tecido grosso, uma gravata branca e uma roupa limpa, mas de tecido barato; ao contrário, acompanhe com muita atenção os movimentos de seu vizinho da direita, de gravata fina e elegante, muitos berloques, suíças, ar de gente honesta e próspera, maneira desenvolta de falar; é este camarada quem vai roubar seu lenço ou seu relógio.

E o que fazer quando somos roubados por eles?

Não há nada a fazer. Se o seu brilhante desapareceu, não perca tempo em pedir contas a esse senhor. Inútul revistá-lo, nada vai encontrar; ele irá se fazer de ofendido e você se humilhará à toa. Seu brilhante está a cem passos; e, prestando um pouco de atenção, você verá sete ou oito fashionables postados no meio da multidão em pontos estratégicos.

E aqueles que entram no crime por gosto?

Estes são aqueles que Dr. Gall descrever como infelizes cujo vício decorre de sua organização mental. Há, naturalmente, grandes criminosos que amam o vício e que o abraçam efusivamente; acho que estes entram na lista daqueles que se tornam criminosos por gosto.

E os que não amam o vício? Não sentem remorso?

De fato, em algum deles há remorsos crescentes antes que a voz da consciência se apague. A multidão, ao ver um homem no banco dos réus, o vê como um criminoso, o abomina; no entanto, esquadrinhando sua alma, um padre pode ver nascer o arrependimento. Que grande tema para a reflexão! A religião católica é sublime quando, em vez de virar o rosto com horror, abre os braços e chora com o pecador.

Seria certo afirmar que os ladrões sempre existiram e sempre existirão?

Sim. Eles são o produto necessário de uma sociedade constituída. Na verdade, em todos os tempos, os homens sempre estiveram enamorados da fortuna. Todos dizem: “Hoje em dia, o dinheiro é tudo, quem tem dinheiro tem tudo”. Ah! Evitem repetir essas frases banais, passarão por tolos. Desde que o mundo é mundo, o dinheiro foi adorado e buscado com o mesmo ardor.

Para encerrarmos nossa conversa, eu gostaria de perguntar se o único ladrão é o que rouba explicitamente.

Todos procuram uma maneira de fazer uma fortuna rápida e sólida, porque todos sabem que, depois de adquirida, ninguém se lamentará; ora, essa maneira é através do roubo, e o roubo é coisa comum.

Como assim?

O comerciante que ganha cem por cento, rouba; também rouba o fornecedor que paga a 30 mil homens 10 centavos por dia, anota os ausentes, estraga o trigo misturando farelo para render mais; outro, queima um testamento; outro, adultera os impostos; outro, inventa uma caixa de pensões; há mil maneiras de roubar. O verdadeiro talento consiste em ocultar o roubo sob uma aparência de legalidade: que horror que é apoderar-se do bem alheio, só o que vem de nós nos pertence, eis a grande astúcia. Os ladrões espertos são recebidos pela sociedade, passam por pessoas de bem.

Algo a acrescentar?

Os ladrões são uma perigosa peste das sociedades, mas não se pode negar sua utilidade para a ordem social. Se compararmos uma sociedade a um quadro, veremos que são necessárias zonas de sombras e zonas de luz, não? Que seria de nós se o mundo fosse povoado exclusivamente de pessoas honradas, ricas, de bons sentimentos, tolas, piedosas, políticas, simples, dissimuladas? Ah, seria um tédio mortal, não haveria mais nada picante. A humanidade entraria em luto no dia em que já não houvesse fechaduras.