A tal cura gay mata! Por Erika Oliveira de Paula

Atualizado em 13 de outubro de 2023 às 11:31
A influencer bolsonarista Karol Eller. Foto: Reprodução

Por Erika Oliveira de Paula, psicóloga graduada pela Universidade Guarulhos e especialista sexologia pela FMABC

Em 2014, quando iniciei meus estudos sobre gênero e sexualidade na pós-graduação da USP, meu primeiro trabalho de pesquisa foi sobre a chamada “cura gay”. Na época, já havia tramitado na Câmara uma tentativa de anulação da Resolução 01/99, que proíbe psicólogos no país de exercerem tal atividade.

Todo o material de pesquisa foi obtido por meio da associação americana PSICO-cristã “LIA” (Amor em Ação), que prometia a reversão da orientação sexual. Meu estudo tinha duas etapas: entender como funcionava essa terapia e avaliar sua eficácia.

A “LIA” conduzia o “processo de reversão” de forma semelhante aos Alcoólicos Anônimos, com 12 passos para a reabilitação (como se ser LGBTQIA+ fosse um vício). No entanto, suas práticas lembravam a tortura da Segunda Guerra Mundial, incluindo choques na genitália caso a pessoa tivesse alguma ereção ao ser exposta a estímulos visuais de pessoas do mesmo gênero.

Essa pesquisa me chocou profundamente, não apenas devido à conduta da “LIA”, mas também pela suposta eficácia garantida às famílias que pagavam 2 mil dólares por mês para que seus filhos e maridos deixassem de ser uma “abominação” aos olhos de Deus. No entanto, 70% dos participantes desenvolviam ansiedade, pânico, depressão, e 30% chegavam a cometer suicídio.

Anos depois, o que pesquisei inspirou o filme “Boy Erased” e o documentário “Pray Away” da Netflix.

No Brasil, desde 2018 até hoje, a onda conservadora neopentecostal tem tentado diversas vezes anular a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CRP) que proíbe essa prática por psicólogos. No entanto, nesse mesmo Brasil, vemos a bancada religiosa ganhar mais força no Congresso, o crescimento do fundamentalismo capitalista e a constante ameaça de retrocessos nos direitos conquistados com muita luta pela comunidade LGBTQIAP+.

E sim, a “cura gay” no Brasil ocorre todos os dias, seja por meio da homofobia, expulsão de adolescentes de suas casas ou em centros religiosos que operam no mesmo modelo que a “LIA” de Memphis, nos EUA.

Na madrugada mais recente, a influenciadora de extrema-direita Karol Eller postou uma despedida em suas redes sociais: “Perdi a guerra, me perdoem!” Alguns dias antes, ela havia mencionado que estava iniciando o processo de “reversão”, a fim de anular sua homossexualidade e, assim, corresponder às expectativas de sua fé. Coincidência? Não!

Publicação de Karol Eller. Foto: reprodução

Essas tristes estatísticas que eu acompanhei em 2014 agora têm números nacionais. A questão é: como mudar quem se é? Pedir a alguém que mude, controle seus desejos, modifique sua identidade, pensamentos e memórias é uma tarefa árdua.

O preconceito afeta as pessoas profundamente, levando ao sentimento de culpa por não corresponder às expectativas alheias, resultando em transtornos mentais como depressão e ansiedade.

As terapias de “reversão” apenas agravam essa sensação de inadequação e disforia, pois, mesmo com todo o “aparato” (incluindo tortura física e psicológica), as pessoas não conseguem mudar.

Sigmund Freud, em 1914, descreveu o conceito de “egodistonia”, que é o oposto de “egossintonia”. A egodistonia ocorre quando os aspectos do pensamento, impulsos, atitudes, comportamentos e sentimentos entram em conflito com a própria pessoa. Por exemplo, quando alguém é homossexual, mas discorda dessa característica. Nesses casos, a atividade mental está em oposição ao ego, levando ao adoecimento.

A “cura gay” não apenas causa sofrimento, mas também pode levar à morte. À medida que a agenda conservadora avança, essa prática ameaça ainda mais a comunidade LGBTQIAP+, e é importante ressaltar que essa questão envolve não apenas aspectos religiosos, mas também interesses financeiros significativos.

Participe de nosso grupo no WhatsApp, clicando neste link
Entre em nosso canal no Telegram, clique neste link