A tatuagem que não foi feita. Por Moisés Mendes

Atualizado em 27 de dezembro de 2019 às 6:47

 

A moça aproxima-se da maca e começa as fazer as perguntas clássicas da enfermagem antes de um exame. O senhor interrogado está deitado, mas se percebe que é magro e alto e tem uns 90 anos. Está na área em que se forma a fila da tomografia e da ressonância da Santa Casa de Porto Alegre.

A moça pergunta e ele responde em voz alta e trêmula. Sente tontura? Não. Tem pressão alta? Tomo remédio. Tem diabetes? Não? Já teve fraturas? Não.

E todos do entorno vão ouvindo o questionário, num ambiente em que dores, segredos, esperas e esperanças são compartilhadas em silêncio ou em confissões compulsórias como aquela. Não há muito o que esconder num hospital.

E chega então o momento em que, além do sim e do não, o entrevistado acrescenta um comentário inesperado à resposta. A moça pergunta: o senhor tem tatuagem? E o paciente parece elevar a voz, para enfatizar a informação com um certo tom de lamento:

– Não. Mas deveria ter feito.

A técnica de enfermagem sorri, e o formulário vai sendo preenchido, até o momento em que ela conclui sua tarefa, diz que alguém irá buscá-lo para o exame e se despede com delicadeza: que dê tudo certo para o senhor.

O homem que deveria ter feito a tatuagem fica ali por alguns minutos diante de mim, a menos de 10 metros, e eu sentado e inquieto, como se minha vocação de repórter tivesse sido acionada, mas não o suficiente para me mobilizar até ele.

Alguém com 90 anos foi jovem quando as tatuagens não estavam popularizadas no Brasil. Mas poderia, quem sabe, ter pensado em se tatuar já como homem maduro, ou talvez tenha dito agora que deveria ter uma tatuagem apenas para apaziguar a tensão antes de entrar no tubo da ressonância.

Daqui a uns 70 anos, um jovem de hoje, com ou sem tatuagens, terá em muitos momentos a chance que todos temos de responder em voz alta que não fizemos algo que deveríamos ter feito. Uma tatuagem tribal, o desenho de uma frase em letras góticas, um nome, uma águia, uma rosa.

Alguém diante de um tubo de ressonância (como serão os tubos daqui a 70 anos?) será sempre confrontado com o imprevisto que o espera dali a alguns minutos e com o passado de coisas não feitas. Ninguém fica impune ao se submeter aos barulhos de um exame de ressonância.

Mas um jovem de hoje, daqui a sete décadas, talvez tenha déficits que não guardem nenhuma relação com as coisas de hoje. Qual será o sentido de uma tatuagem em 2090?

Daqui a 70 anos, alguém terá remorsos profundos por não ter feito algo que marcasse seus 20 anos, que o definisse como jovem de uma determinada época?

Não havia nenhum jovem na sala das macas da Santa Casa. Eles também sofrem com grandes arrependimentos enquanto são jovens. Mas sobrevivem e vão em frente, até o dia que são confrontados na velhice com o que deixaram de fazer.

E descobrem então que falta uma tatuagem, uma transgressão, a marca de um combate, não na perna ou num braço, mas na memória enfumaçada de tempos terríveis como os que vivemos hoje.