A tenebrosa onda de estupros numa pequena cidade universitária norte-americana. Por Luísa Gadelha

Atualizado em 25 de maio de 2016 às 12:44

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Missoula é uma pequena cidade do estado de Montana, no noroeste dos Estados Unidos, próxima a Washington. Com menos de 70 mil habitantes, Missoula possui uma conceituada universidade e um célebre time de futebol americano, o Grizzlies, ou Griz. Seus jogadores são tidos como astros e admirados pela população local.

De 2008 a 2015, o departamento de justiça de Missoula investigou cerca de 350 agressões sexuais, sendo pouquíssimos casos levados adiante e tendo resultado em punição aos agressores.

Em Missoula – O estupro e o sistema judicial em uma cidade universitária (Companhia das Letras, 471 páginas, tradução de Sara Grünhagen), o escritor nortea-mericano Jon Krakauer, o mesmo do aclamado livro Na natureza selvagem – que virou filme em 2007, dirigido por Sean Penn – faz um apanhado das agressões e estupros sofridos na cidade, entrevistando vítimas, familiares, advogados e acusados.

Segundo a apuração de Jon Krakauer, grande parte dos estupros ocorreram dentro do campus universitário e muitos jogadores do Griz estiveram envolvidos. Como os jogadores são uma espécie de celebridade, várias vítimas foram desacreditadas, inclusive pela polícia, levando outras mulheres a não denunciarem.

As histórias contadas por Krakauer são impactantes e comoventes, como a de Allison, estuprada enquanto dormia pelo melhor amigo de infância, que a chamava de “irmãzinha”, e a quem ela recorria quando tinha problemas. Ou Kaitlynn, estuprada por um rapaz virgem, que se considerava inocente e, baseado em filmes pornôs, achava que a faria “ejacular”.

Mais chocante ainda é a atitude dos policias e investigadores após receberem as denúncias: o estupro parece ser o único crime em que a vítima é desacreditada. Geralmente, pergunta-se à garota se ela tem namorado porque, segundo um dos policiais, muitas garotas traem o companheiro e, depois, arrependidas, alegam ter sido estupradas. Outras são barraqueiras que buscam fama e notoriedade em cima de um jogador popular.

O despreparo da polícia em acatar a denúncia das vítimas quando não há testemunhas, a atitude dos acusados de não perceberem que as vítimas não deram consentimento para que a relação sexual ocorresse, a reação da população em crer que os jogadores do Griz são bons rapazes incapazes de cometer estupros e desmoralizar as vítimas em público e em redes sociais, tudo isso mostra como o sistema está impregnado de machismo e como as vítimas se encontram desamparadas perante a lei.

“Quando escutam o termo ‘estuprador’”, diz um psicólogo especializado contratado pela defesa de uma das vítimas, “muitas pessoas pensam num cara com uma máscara de esqui, empunhando uma faca, escondido no mato, invadindo uma casa. É uma imagem assustadora, e de fato isso acontece, mas… a grande maioria dos estupros, bem mais e 80%, é na verdade cometida por conhecidos”.

O estupro cometido por pessoas conhecidas, amigos e colegas nos quais confiamos, diz o especialista, é ainda mais traumatizante, pois a vítima perde as referências de segurança, se culpabiliza e reage de formas antinaturais, como não oferecer resistência ao agressor, não gritar nem correr, atitudes que os advogados dos agressores costumam interpretar como consentimento perante o júri.

Ainda segundo Krakauer, um estudo sugere que “somente entre 5% e 20% de estupros violentos nos Estados Unidos são denunciados à polícia; insignificantes 0,4% a 5,4% dos estupros chegam a ser levados a julgamento; e apenas 0,2% a 2,8% dos estupros violentos culminam numa condenação. (…) Quando uma pessoa é estuprada nos Estados Unidos, mais de 90% das vezes o estuprador sai impune do crime”.

O jornalismo investigativo, sobretudo nos EUA, tem escancarado escândalos até então desconhecidos da população em geral, como o recente filme vencedor do Oscar Spotlight,  no qual a equipe homônima de repórteres desvenda crimes de pedofilia cometidos por padres católicos na cidade de Boston, ou ainda o documentário West of Memphis (2012), que mostra como três jovens inocentes foram brutalmente condenados à morte apenas porque se vestiam de preto e ouviam heavy metal. O documentário The invisible war (2012) também explora a temática de estupro e agressões sexuais, sofridas por mulheres – e alguns homens – dentro do exército americano, com muitos casos ocorridos há décadas, não reportados ou cujas investigações não foram levadas a fundo pelas autoridades competentes.

O estupro, infelizmente, continua sendo um tema que precisa ser debatido e seu conceito, esclarecido. A credibilidade da vítima não deve ser questionada, nem as investigações interrompidas. Missoula exibe mais um lado sombrio da justiça e cultura americanas – presente, também, em outros países -, que intimida e culpabiliza mulheres agredidas e traumatizadas, e inocenta estupradores porque são rapazes “respeitosos, modestos, jovens de integridade”.