A terra tem que ser mesmo plana para justificar a profundidade dessa gente rasa e banal. Por Kakay

Atualizado em 11 de junho de 2021 às 7:58
O presidente Jair Bolsonaro

Por Kakay

A vida é luta renhida: viver é lutar. A vida é combate que os fracos abate, que os fortes, os bravos, só faz exaltar.”
– Gonçalves Dias

Quando nos últimos dias resolvi falar sobre o resgaste das nossas cores e até dos nossos símbolos, eu me senti, num 1º momento, meio piegas. Como um norte-americano do interior do Texas. Mas, aos poucos, eu vi que esses gestos simples definem hoje, em parte, um ato de resistência. Ao sair de verde e amarelo na manifestação de 29 de maio, nada mais fiz do que dizer um basta, uma demonstração de cansaço e de indignação a esta mediocridade que nos domina.

É difícil manter a sanidade com 500 mil mortos nos fazendo companhia. Com as gravíssimas restrições ao dia a dia, com uma tristeza que se instalou nas pessoas e, ainda, com uma profunda ignorância ao nosso redor. Constato que quase tão grave quanto a morte física é o domínio absoluto das trevas e do obscurantismo.

Não é mais possível conviver com um país que não parece real. Estes bárbaros, repito, criaram um mundo imaginário e a partir dele comandam a narrativa do caos. Nós viramos o irreal, somos o ponto fora da curva. Pensar virou um gesto perigoso e revolucionário. Recorro-me a Miguel Torga, em “Auto-Retrato”:

É por trás do espelho que me vejo.
Numa espécie de quadro em negativo.
Sinais fundos e certos de que vivo.
Mas sem a nitidez que todos me atribuem.

Para que uma discussão se realize, é necessário que os envolvidos estejam à disposição para trocar ideias, para mudar de posicionamento e para refletir. Este bando que se apoderou do Brasil não funciona com racionalidade. No mundo imaginário e livre das amarras da consciência, a mentira é o motor que impulsiona as principais ações. Mas não são mentiras desconectadas, elas são estruturadas como uma estratégia de dominação.

O próprio presidente da República se sujeita a criar factoides para alimentar a sua rede insana de fake news sem nenhum resquício de constrangimento, e domina a arte de desviar as atenções dos problemas reais que interessam à nação.

Como enfrentar uma CPI no Senado Federal que, com alguns poderes inerentes ao Poder Judiciário, poderia chegar a desnudar e revelar os inúmeros crimes cometidos durante a crise sanitária? Com o uso desavergonhando, não só das mentiras, mas da afirmação e reafirmação deste mundo irreal, no qual habitam estes seres estranhos.

Como parte do país acredita na narrativa criada por eles, os depoimentos, muitas vezes, não têm nenhum compromisso com a verdade. E a força da fantasia se impõe. Lembro-me do velho Leão de Formosa:

Foi um professor de silêncio
que um dia me disse:
a palavra é uma tolice.
Fica mudo e ficarás imenso.

O presidente da República tem o desplante e a ousadia de citar um documento que sabe não existir, sabe ser falso, no intuito de alimentar a sua rede de robôs e de fanáticos. E faz isso em plena 3ª onda do vírus e de um número crescente de mortes. Para criar uma enorme nuvem de fumaça e desviar as atenções, ele simplesmente afirma que há uma informação do TCU de que metade das mortes contabilizadas como sendo pela covid, na verdade, foram forjadas. Não é uma mentira qualquer. É uma falsidade que envolve o Tribunal de Contas da União.

E os objetivos foram alcançados: o gado infame repercute como verdade, a imprensa dá grande destaque e as mortes reais parecem estar em segundo plano. O TCU desmente, mas a presidente da principal comissão da Câmara dos Deputados avisa no Twitter que a crise acabou, pois as mortes são falsas. É a mentira virando verdade no mundo virtual. Enfim, o mundo imaginário é alçado a algo real e palpável. Nós somos a irrealidade, os fantasmas. As nossas preocupações são a prova de que o universo verdadeiro é tão cruel que não existe. O que existe é a fantasia desses senhores da mentira, que dominaram e manipularam a história. A terra tem que ser mesmo plana para justificar a profundidade dessa gente rasa e banal.

E o show de horror é cuidadosamente dirigido como um espetáculo, no qual um ato se destaca a cada momento. Como um teatro mambembe, só que com atores profissionais. O texto é que é pobre. Tiram da cartola uma Copa América no meio da pandemia. Às favas as preocupações com a aglomeração e com o crescimento da contaminação. Para quem já mandou às favas os escrúpulos da consciência ao implantar a ditadura, torna-se insignificante bancar o circo que alimenta o mundo criado para a fantasia. E todos nós somos alimentados nesse embate. Até o Supremo Tribunal é chamado a se manifestar sobre a possibilidade de ter ou não os jogos da Copa. Nós perdemos o foco. Eles dirigem o espetáculo e nós somos meros espectadores.

E, nesse teatro de marionetes, os fios vão comandando o show, cuidadosamente manipulado. As Forças Armadas são subjugadas e os poderes constituídos olham apenas de soslaio. Os militares ocupam a cena política sem maiores constrangimentos. Enquanto nós ficamos a discutir se é correto ou não ocupar as ruas para demonstrar nossa revolta e perplexidade. A nossa consciência parece ser parte da estratégia do jogo jogado por aqueles que sabem tratá-la como um entrave. Difícil enfrentar a barbárie só com argumentos, mas é o que nos resta.

É necessário aprofundar nossas frentes de resistência. O debate tem que ser sobre a necessidade imperiosa do impeachment, os crimes de responsabilidade se acumulam e até ficam vulgares. Importante também enfrentar a hipótese de uma ação criminal subsidiária, na inércia do PGR, para responsabilizar o presidente e seu grupo. Se ficarmos apostando no desgaste do governo, à espera das eleições, estaremos exatamente participando do jogo que só interessa a eles. Fazendo o jogo da banca. Talvez seja essa a única hipótese de sermos parte do mundo ilusório criado por esse grupo. Eles dão as cartas, e a nós resta o papel de figurantes. Eles continuam blefando e nós não teremos mais como enfrentá-los, pois eles dirigem o espetáculo.

Resta-nos Pessoa:

É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.