A trama de oito assassinatos e torturas que assombra a política em Goiás. Por Rubens Valente

Atualizado em 20 de novembro de 2023 às 21:33
Trama começou a ser desvendada pelo Ministério Público (MP) e pela Polícia Civil de Goiás – Reprodução

Por Rubens Valente

Oito assassinatos, um suposto suicídio, dez policiais militares presos e um ponto de interrogação sobre o motivo e o mandante do crime que está na origem do banho de sangue. A trama que começou a ser desvendada pelo Ministério Público (MP) e pela Polícia Civil de Goiás na última terça-feira (19), com a deflagração da Operação Tesarac, é uma das mais covardes na longa crônica da violência policial em Goiás, mas não fica por aí. Ela joga sombras sobre a política de Goiás, em especial o campo da direita e o governo estadual.

A história começa na noite de 23 de junho de 2021, quando o representante comercial e militante político Fábio Alves Escobar Cavalcante, de 38 anos, tomou um táxi para se encontrar com um homem chamado “Fernando” que havia entrado em contato com ele supostamente interessado em vender uma lavanderia no bairro Jamil Miguel, em Anápolis (GO). Escobar, que trabalhava no ramo de lavanderias, contou ao taxista que queria vistoriar o imóvel e, por isso, estava indo em direção ao vendedor. Encontrou uma emboscada. Não havia Fernando nenhum. Assim que saiu do táxi, foi atingido com quatro tiros disparados por dois homens que saíram de um Fiat Uno com os rostos cobertos por balaclavas. Ainda foi socorrido pelo taxista, mas morreu logo que chegou ao hospital.

A morte de Escobar chocou o meio político de Anápolis, o terceiro município mais populoso de Goiás, com 398 mil moradores, localizado a uma hora de carro da capital, Goiânia. A vítima teve um papel de destaque na vitoriosa campanha da direita em Anápolis em 2018. Segundo diversas publicações na imprensa, Escobar foi um dos coordenadores municipais da campanha do então senador Ronaldo Caiado (União Brasil) ao governo de Goiás. Caiado foi apoiador de Jair Bolsonaro em 2018 e 2022.

Fábio era filho de José Escobar, que foi vereador e presidente da Câmara Municipal de Anápolis por duas vezes, em 1987 e 1993. Nos anos 1980, José pertenceu ao PMDB, que fez oposição à ditadura militar, mas seu filho rumou para a campanha da direita em 2018.

Logo após a posse de Caiado, Fábio Escobar passou a criticar publicamente o novo governador. Em março de 2019, Escobar disse que “Caiado despreza as pessoas sem estudo. Nem todo mundo é filho de fazendeiro e tem oportunidade de fazer faculdade de medicina”. Ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) nos anos 1980, Caiado também é médico. Em outra entrevista, Escobar disse que Caiado “deveria desligar as turbinas da vaidade”.

Em entrevista concedida em fevereiro de 2019 ao site Goiás24horas, Escobar levantou dúvidas sobre o comando do DEM em Anápolis ao dizer que pediu para ver a prestação de contas da campanha de 2018, mas não teve sucesso. Dias depois, disse que tinha “dúvidas quanto às doações legais na campanha do DEM em Anápolis”.

Em maio de 2019, Escobar divulgou um vídeo em redes sociais no qual afirmou ter recebido “uma tentativa de suborno” de R$ 150 mil sob a condição de “ou pega ou morre”. Ele disse que logo em seguida devolveu o dinheiro.

“Eu recebi uma tentativa de suborno. Através de um intermediário, de um empresário, R$ 150 mil. E a pessoa que veio me entregar o dinheiro é mais ou menos assim, ou pega ou morre. Pois bem, logo que ele me entregou esse dinheiro eu fui lá no escritório desse empresário, devolvi os 150 mil [reais], gravei, esse vídeo vai para o amanhã e dia primeiro vou entregar para o promotor. E aí a Justiça vai mostrar quem que é o vilão e quem que é a vítima. […] Eu tenho Deus na minha vida, tenho dois filhos para criar, mas não vou ficar calado com medo de morrer, porque Deus sabe a hora de todo mundo.”

Escobar voltou as baterias contra um membro do DEM de Anápolis e disse que “o governador o nomeou para a administração da Codego”, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Goiás, vinculada ao governo goiano. “Não se mudou a prática que ele [Caiado] tanto condenava de pessoas que são corruptas e que querem vantagens no governo. Mas assim, além da tentativa de suborno, também teve falsidade ideológica, caixa dois e formação de quadrilha”, disse Escobar.

Fabio Escobar
Fábio Escobar, ex-coordenador da campanha de Ronaldo Caiado (União) em Anápolis (GO), morto a tiros em junho de 2021

Vítima disse que governador não o recebeu para ouvir denúncia

Meses depois, em outro vídeo, Escobar afirmou que Caiado não quis ouvi-lo a respeito de sua denúncia. “Eu só tenho uma questão aqui. Governador, o senhor não me recebeu, não quis me escutar, sabendo que eu fiz parte do projeto do DEM, seis anos, acreditando no seu governo. Governo esse que até agora não mostrou a que veio, independente de pandemia ou não. […] E hoje estou aqui apenas para fazer um desabafo: eu não sou mentiroso, eu não roubo, eu tenho uma vida limpa […]. Na denúncia que eu fiz, governador, o senhor ficou atrás da moita. Agora eu pergunto, o senhor vai continuar nela?”

Depois que fez as denúncias, Escobar relatou ser alvo de uma campanha de difamação em redes sociais, a exemplo de um meme divulgado que colocava em dúvida qual era a sua profissão. Em outro vídeo, divulgado em março de 2020, Escobar contou que havia acabado de ir à delegacia regional de Polícia Civil para denunciar e pedir providências sobre a invenção de uma “ficha criminal” que o acusava falsamente de crimes como tráfico de drogas.

“Incluíram isso na minha ficha criminal. E os sicários do [partido] Democratas daqui de Anápolis têm divulgado isso para a cidade toda. Talvez até o próprio governador deve acreditar nesse absurdo”, disse Escobar. No mesmo vídeo, Escobar elogiou Caiado a propósito da chegada de um novo delegado de polícia em Anápolis, cujo trabalho ele aprovou. “Quero até cumprimentá-lo. Bela escolha do governador, acertou.”

As denúncias de Escobar tiveram ampla cobertura do site Goiás24horas. Em março de 2020, o jornalista responsável pelo site, Cristiano Silva, foi agredido numa rua de Goiânia, conforme documentado pela câmera de segurança de uma casa vizinha.

Ele estava apurando uma reportagem crítica ao governo. Segundo a denúncia que o jornalista encaminhou na época a vários setores dos governos estadual e federal, a agressão partiu de dois policiais militares, “seguranças do Palácio das Esmeraldas”, a sede do governo goiano. Segundo o jornalista, um deles estava lotado na Casa Militar do governo.

Dois anos depois, o site divulgou que a agressão “nunca foi apurada” pela polícia ou pelo MP. Em virtude da insegurança no exercício da profissão, o jornalista se mudou de Goiás.

Grupo de PMs é suspeito de 7 homicídios, incluindo de uma grávida

O assassinato de Escobar em 2021 também parecia ter caído no esquecimento até a última terça-feira, quando o MP e a Polícia Civil desencadearam, com autorização da Justiça, a Operação Terasac em cinco cidades de Goiás e em Brasília. A juíza Flávia Morais Nagato de Araújo Almeida expediu mandados de prisão temporária contra dez policiais militares por um prazo inicial de 30 dias.

Descortinou-se uma trama brutal. Na ordem que autorizou as prisões e as buscas e apreensões em diversos endereços, a juíza explicou que as investigações da polícia concluíram que, a fim de encobrir o assassinato de Escobar, um grupo de policiais militares de Goiás matou outras sete pessoas. Pelo menos três também “foram torturadas até a morte (com lesões de defesa) para que fornecessem informações sobre o paradeiro” de um amigo.

A investigação desvendou a cadeia dos acontecimentos. Revelou-se que o telefone do qual partiu a ligação que atraiu Escobar para a emboscada em 2021 estava, meses antes do crime, em poder da moradora de Anápolis Bruna Vitória Rabelo Tavares. O aparelho Moto G6 Plus fora obtido pelo companheiro de Bruna, que seria “traficante de drogas”, segundo a investigação.

No dia 1º de junho de 2021, o casal estava em um motel quando foi abordado e espancado por dois homens, que roubaram o aparelho celular. O companheiro de Bruna identificou os agressores como dois policiais militares que usavam uma viatura policial. O casal registrou um boletim de ocorrência.

Em 21 de junho, ou seja, 20 dias depois do assalto e dois dias antes do assassinato de Escobar, um dos PMs usou o CPF do próprio Escobar para cadastrar um chip no telefone que pertencera a Bruna. Em seguida, a pessoa que se identificou como “Fernando” entrou em contato com Escobar para falar da suposta venda da lavanderia.

Dois meses depois do homicídio de Escobar, diz a decisão da juíza, Bruna foi assassinada a tiros de revólver calibre 38 por dois homens que ocupavam uma moto. Segundo a imprensa goiana, ela estava grávida de sete meses. O companheiro de Bruna apontou como autor dos disparos um dos PMs que participaram do ataque no motel.

Horas depois, no mesmo dia, três amigos do casal também foram mortos (Gabriel Santos Vital, Gustavo Lage Santana e Mikael Garcia de Faria) por uma equipe da PM. Na época, os policiais alegaram “confronto com disparos de arma de fogo”. Segundo o companheiro de Bruna, a PM “plantou”, no local da chacina, a arma de fogo utilizada para matar sua companheira. Queriam, segundo a testemunha, atribuir a autoria do assassinato de Bruna aos três amigos mortos.

A quebra do sigilo das comunicações dos PMs envolvidos nessa ocorrência demonstrou, segundo a juíza, que os policiais envolvidos no suposto confronto na verdade “possuíam total controle da situação e não havia agressão injusta por parte das vítimas, [os PMs] retardando deliberadamente o suposto confronto para o período noturno, horário em que a rua ficaria com menos movimento de pessoas e carros”. Um dos PMs monitorou o grupo de amigos “supostamente com um rastreador eletrônico” e “passou as informações em tempo real” para os outros policiais.

Em 19 de janeiro de 2022, novamente uma equipe de policiais militares matou mais três amigos do companheiro de Bruna (Bruno Chendes, Edivaldo Alves da Luz Júnior e Daniel Douglas de Oliveira Alves). O motivo do crime, segundo a investigação, foi “obter informações” sobre o paradeiro do companheiro de Bruna. Não conseguiram.

Alegando que se tratou de um novo “confronto”, os PMs disseram que foram dados “35 disparos de armas de fogo”. Mas a perícia localizou apenas uma cápsula. Segundo a investigação, isso foi um “indicativo de adulteração do local do crime de homicídio”.

Carros da PM de Goiás enfileirados
Operação Terasac prendeu dez policiais militares por envolvimento nos assassinatos

Movimentações financeiras milionárias nas contas de policiais

A investigação demonstrou ainda que, nos três dias que antecederam a morte de Escobar, o telefone celular utilizado para atraí-lo estava “nas imediações do endereço residencial” de outro PM, o sargento Welton da Silva Veiga. Ele já era investigado sob suspeita de envolvimento na morte de outra pessoa, o fazendeiro Luiz Carlos Ribeiro da Silva, assassinado em dezembro de 2022, em um caso aparentemente sem relação direta com a morte de Escobar.

Em janeiro de 2023, uma equipe de policiais civis foi cumprir um mandado de busca e apreensão na casa do sargento sobre esse caso quando, segundo a decisão da juíza, Veiga “reagiu, atirando contra os policiais civis e posteriormente cometeu suicídio, efetuando disparo contra sua própria cabeça”. Na sua casa foram encontradas três armas de fogo calibres 38 e 49, munições, duas máscaras do tipo balaclava, uma placa de veículo e roupas sujas de sangue.

As movimentações financeiras dos PMs intrigam os investigadores. Um deles movimentou cerca de R$ 6 milhões num período de quatro anos. Outro girou R$ 5,8 milhões, com “picos significativos no final de 2020 e início dos anos de 2021 e 2022”.

Com a Operação Terasac, pela primeira vez, dois anos depois do assassinato de Escobar, foi possível entender a arquitetura e alguns nomes ligados ao homicídio. “Analisando a cronologia dos fatos e a rede de atos, em tese, praticados pelos representados, há vínculo de causalidade entre as ações e indícios de que, para destruir/adulterar/manipular as provas do homicídio de Fabio Alves Escobar Cavalcante, foram praticados os homicídios de Bruna” e de outras seis pessoas, escreveu a juíza em seu despacho.

Os PMs sabiam que o telefone celular roubado de Bruna e seu companheiro no motel necessariamente os ligaria ao assassinato de Escobar. Daí toda a sequência dos outros crimes.

Mas o nome de quem deu a ordem para matar Escobar, contudo, segue um mistério, pelo menos publicamente. Os inquéritos tramitam sob segredo. O pai de Fábio, José, disse na sexta-feira à Pública que até aquele momento nada foi explicado pela polícia ou pelo MP a respeito do possível mandante do homicídio do seu filho. Ele pede e espera Justiça. Conseguirá ou, dito de outra forma, Goiás conseguirá?

Publicado originalmente em Agência Pública

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