Vá ao estádio, mas não me chame: a violência é intrínseca ao futebol?

Atualizado em 24 de outubro de 2014 às 16:03

 

O procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, Paulo Schmitt, ofereceu denúncia contra o Atlético Paranaense, o Vasco, o juiz Ricardo Marques Ribeiro e as federações do Paraná e de Santa Catarina por causa da barbárie que tomou conta da Arena Joinville no domingo.

Um torcedor foi internado com traumatismo craniano. Outros três sofreram contusões graves, sendo que um deles teve um corte profundo no rosto. Os dois times podem perder até 20 mandos de campo e receber multas que, somadas, chegam a 200 mil reais, para o clube carioca, e 400 mil para o outro.

Foram cenas de horror. Nada, porém, que se possa chamar de raro. Acontece toda hora. Alguns daqueles homens, membros das organizadas, estão envolvidos em confusões de outras partidas. É comum — mas será intrínseco ao futebol?

Eu gosto de ir ao Pacaembu com meu filho. Mas devo confessar que o que era banal vai se tornando incômodo. O achaque para estacionar o carro. A saída do estádio. A tensão antes, durante e depois. A sensação de que sempre falta um estopim para a coisa descambar, as torcidas se provocando e marcando encontro.

Sêneca escreveu sobre os jogos romanos: “Nada é tão prejudicial para o bom caráter como o hábito de ir a esses espetáculos porque é assim que o vício se insinua através da avenida do prazer. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que eu volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso, e ainda mais cruel e desumano – porque eu estive entre seres humanos.”

George Orwell, num ensaio chamado “O Espírito Esportivo”, fala da turnê que o Dínamo de Moscou fez pela Inglaterra em 1945, logo após a Segunda Guerra. Era uma visita de cortesia que acabou virando uma selvageria. “Assim que surge a questão de prestígio, assim que você sente que você e uma unidade maior serão execrados se perderem, despertam os instintos combativos mais selvagens”, escreveu.

“O esporte levado a sério não tem nada a ver com fair play. Ele está ligado a ódio, ciúme, ostentação, desprezo por todas as regras e prazer sádico em testemunhar a violência ”

Ainda há o componente da personalidade de jogadores, técnicos e cartolas. Jogos ruins e times meia-boca. A falta de vergonha de dirigentes. O Vasco quer contestar na Justiça a goleada humilhante que tomou e que o levou ao rebaixamento pela segunda vez em cinco anos. A tentativa de ressuscitar o tapetão é obra de Eurico Miranda e Roberto Dinamite, vilões de bangue-bangue.

Que tipo de exemplo todos eles dão? A cada vez que estou com Davi nas cadeiras, penso no vínculo que se reforça entre nós ao vibrar e sofrer com o time, nossa alegria e nossa solidariedade na dor. São sentimentos nobres e bons de ser cultivados.

Mas tudo isso costuma ser obliterado num campo de futebol em favor de algo muito escuro. Em que categoria humana entra aquele sujeito com uma barra de ferro com prego na ponta? E o que pisou no pescoço de um rapaz caído no chão?

“Os jogos são levados a sério em Londres e Nova York, e foram levadas a sério em Roma e Bizâncio”, disse Orwell. “Na Idade Média, eles foram disputados e, provavelmente, com muita brutalidade física, mas não tinham se misturado com a política e nem viraram uma causa para grupos que se odeiam”.