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A volta da racionalidade na política externa. Por Gilberto Maringoni

O presidente Lula (PT) – Foto: Reprodução

Por Gilberto Maringoni

O início do governo Lula III é marcado pelas tensões golpistas no front interno e pela perspectiva de recessão numa economia global marcada pelo agudo enfrentamento Leste-Oeste. Nesse cenário instável, a extrema direita avança nos Estados Unidos e na Europa. A situação não é para amadores.

Se formos recorrer a imagens-síntese desses tempos, vale comparar as primeiras páginas do New York Times de 2 e de 9 de janeiro, duas segundas feiras. Na primeira, uma foto panorâmica da entrada do palácio do Planalto mostrava o presidente subindo a rampa com representantes do povo brasileiro, ladeada pela manchete: “Brasil consagra Lula como líder; perdedor foge”. Uma semana depois, com a mesma diagramação, a cena exibia os terroristas tomando a praça dos Três Poderes. O título explicava: “Na capital do Brasil, uma multidão frenética invade o congresso”. A visão a partir de fora é a de um país convulsionado por forças opostas presentes em vários países, a democracia e a regressão extremista.

A difícil vitória

Em meio a tais nós, a eleição de Lula altera o panorama político da América Latina e as perspectivas para o futuro imediato. “O clima do país mudou”, afirmou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, no início de dezembro. A frase, que guarda forte dose de subjetividade, parece se estender além-fronteiras. “As pessoas ao redor do mundo estão esperando que você não apenas salve a Amazônia, mas salve o mundo”, escreveu na New Yorker o jornalista estadunidense Jon Lee Anderson, ao relatar uma conversa com o ex-presidente, logo após sua vitória.

Anderson, autor entre outros do alentado Che, uma biografia, não parece exagerar. Num cenário carente de lideranças globais de envergadura, à exceção talvez de Xi Jinping, Vladimir Putin e do Papa Francisco, independente da opinião que se tenha sobre cada um deles, Lula se destaca. É o único entre os quatro que foi eleito de forma livre e direta pela população.

O antigo sindicalista volta à presidência num quadro em que o fascismo reassume o poder na Itália e torna-se a segunda força parlamentar na Suécia, compondo o governo formado em outubro último. A onda ultraconservadora se consolidou também como segunda tendência na França e avança na Alemanha, em Portugal e na Espanha, além de seguir governando Hungria e Polônia.

O mundo é outro

Diferentemente do panorama de duas décadas atrás, quando Lula chegou ao Planalto pela primeira vez, o unilateralismo de Washington não reina absoluto frente a uma Rússia devastada pelos anos Yeltsin e uma China que começava a se colocar como ator internacional de envergadura. A guerra ao terror desviara o foco do Departamento de Estado para ações no Oriente Médio – Iraque e Líbia em especial – e no Afeganistão. A América Latina, secundarizada pela diplomacia imperial, encontrou aí a oportunidade de criar laços de confiança entre países que elegiam governos marcados por um vago discurso antiliberal e colocavam agendas sociais no centro de suas ações, formando o que imprecisamente se denominou onda rosa. O reiterado êxito eleitoral das administrações do PT, dos Kirchner, de Hugo Chávez, de Evo Morales, de Rafael Correa e da Frente Ampla uruguaia se deu a partir de políticas públicas tornadas possíveis pela alta dos preços das commodities entre 2004-14, o que favoreceu o balanço de pagamentos de cada um, até a emergência da crise de 2008.

Tais administrações enfrentaram um paradoxo. Alegaram buscar distância das diretrizes econômicas mercadistas, esboçaram maior ativismo estatal, reafirmaram as soberanias nacionais, mas não lograram alterar estruturalmente o panorama econômico e social de seus países. Aplicaram programas pontuais de socorro à pobreza, sem projetos estruturantes de um novo modelo de desenvolvimento.

A política externa dos dois primeiros governos Lula (2003-2011) caracterizou-se por sua postura desenvolvimentista e multilateralista. O país teve uma aproximação intensa com a África, a Ásia e os países árabes, consolidando a universalização da política externa brasileira.

Há duas décadas, os principais parceiros comerciais do Brasil eram, pela ordem, Estados Unidos, Argentina e China. Os termos da equação praticamente se inverteram e a sequência agora compreende a primazia da China, seguida dos Estados Unidos e Argentina.

Os prejuízos da desindustrialização

Embora sigamos com crescentes superávits na balança comercial, há uma preponderância absoluta de commodities agrícolas e minerais na pauta de exportações. A situação indica perda de competitividade e consolida uma tendência reprimarizante, o que fortalece o caráter periférico da economia nacional. A isso se soma a aprovação do teto de gastos, em 2016, que condena o país a um ajuste fiscal permanente, impossibilitando qualquer política desenvolvimentista consistente. Caso o novo governo não consiga anulá-lo, o Brasil ficará aprisionado à condição de importador de manufaturados, o que reduz os horizontes da política externa. O espectro do fazendão de café pré-1930 se torna perigosamente real, num mundo em que as disputas em áreas de tecnologias de ponta, com produtividade crescente, definem o mercado global.

O País exerceu nos anos Lula um papel de crescente influência global, buscando ter voz nos organismos multilaterais e colocando-se como articulador na conformação do G-20 (2008) e do BRICS (2010). Sem liderar propriamente uma tendência alternativa, o país, no entanto, buscou ocupar os limites do sistema internacional como um articulador continental decisivo e presença qualificada entre os países do Sul global. Apesar de ter mantido a histórica bandeira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – para o qual as chances de êxito são reduzidas -, o Brasil soube adaptar essa demanda para uma justa reivindicação pela democratização das instâncias de poder global.

A situação atual é qualitativamente distinta. O mundo é pautado por um enfrentamento entre EUA e China, que começou como guerra comercial no governo Trump e avança para o de disputa geopolítica de envergadura. No documento oficial Estratégia de Segurança Nacional, divulgado no início de outubro, a Casa Branca demonstra que Moscou e Pequim estão cada vez mais alinhados entre si, apesar de terem desafios distintos. Enquanto a Rússia “desrespeita de forma imprudente as leis básicas da ordem internacional”, a China “é [nossa] única concorrente que tem a intenção de remodelar a ordem internacional, incrementando [seu] poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para alcançar tal objetivo”. Ou seja, de concorrente no mercado, o país asiático passa à condição de inimigo estratégico, numa reedição torta dos termos da Guerra Fria. Ambos os lados pressionam os países da periferia a alinhamentos nítidos. Nesse quadro delicado, o Brasil precisará exercer a um só tempo neutralidade e protagonismo diante do novo conflito Leste-Oeste.

Desde o golpe parlamentar de 2016, os governos que sucederam o de Dilma Rousseff utilizaram de forma limitada a política externa como instrumento estratégico para o desenvolvimento interno. O que se viu, especialmente a partir de Bolsonaro, foi a subordinação da diplomacia a acenos ideológicos à extrema direita global.

Perspectivas no continente

O Brasil dos últimos seis anos retraiu sua capacidade de intervenção, abdicou de participar de organizações como a União das Nações Sulamericanas (Unasul) e a Comunidade de Estados LatinoAmericanos e Caribenhos (CELAC), retraiu sua presença no BRICS e no Mercosul e criou arestas em organismos da ONU, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Comissão de Direitos Humanos. A expressão síntese dessas iniciativas foi proferida pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, em 2020, ao se vangloriar do país ter se isolado a ponto de ocupar a posição de um pária global.

Quais as perspectivas para o quadriênio 2023-2026? Os sinais regionais são dados por vitórias importantes da centroesquerda na América Latina, seguidas por turbulências preocupantes nas economias locais. Em 2018, Andrés Manuel López Obrador chega à presidência do México, seguido pelo retorno do peronismo à Casa Rosada, com Alberto Fernández. O país enfrenta agora uma grave crise financeira, com alta inflacionária e desaceleração econômica. As eleições presidenciais bolivianas, em outubro de 2020, na prática, reverteram o golpe de Estado de 2019, com o êxito de Luis Arce.

As grandes mobilizações de 2019-2020 no Chile resultaram na convocação e na eleição de uma assembleia constituinte e na vitória de Gabriel Boric, em 2021. Dificuldades na gestão política e ofensiva conservadora levaram o governo à derrota estratégica no plebiscito da nova Constituição, em setembro último. Na Colômbia, quase três meses de maciços protestos, no primeiro semestre de 2021, foram decisivos para a surpreendente vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez, em junho de 2022.

Há sinais preocupantes na região. Em dezembro de 2022, Pedro Castillo, um líder sindical de esquerda eleito presidente do Peru um ano e meio antes foi derrubado por uma vasta aliança de direita. Seu mandato foi errático e conturbado. Sem maioria parlamentar e tendo rompido com seu partido, o Peru Livre, o chefe do Executivo enfrentou uma intrincada sucessão de crises até tentar uma arriscada manobra: dissolver o Congresso e convocar novas eleições na tentativa de virar o jogo. Embora constitucional, a medida foi inábil e selou seu destino.

O continente foi duramente atingido por mais de dois anos de pandemia. Segundo levantamento da agência Reuters, no final de 2021, 1,55 milhão de latino-americanos havia perdido a vida em decorrência da doença e quase 50 milhões tinham sido infectados. No mundo todo, os óbitos alcançaram 5,35 milhões. Com 11,7% da população planetária, a região exibia quase 30% das mortes. No início de julho último, o total de óbitos passava de 1,7 milhão. Diante desse panorama, a vitória da coalizão liderada pelo PT se torna fator de equilíbrio nas instabilidades vividas pela vizinhança.

Soberania, desenvolvimento e democracia

A política externa do novo mandato de Lula será definida pelo filtro da grande frente que o levou à presidência e pela disputa em curso com o golpismo, liderado especialmente pelo alto comando das Forças Armadas. A retomada de uma política externa altiva e ativa atualizada – para nos fixarmos ao termo cunhado pelo ex-chanceler Celso Amorim – reside fundamentalmente na adoção de diretrizes pautadas no quarteto soberania-desenvolvimento-democracia-meio ambiente. Aqui não há invenção: tais pontos estão fixados na Constituição de 1988. Em seu artigo 4º, a Carta define que nossas relações internacionais são regidas, entre outros, pelos seguintes princípios: defesa da paz, dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo e a integração da América Latina. O grande tema pautado pelo bolsonarismo – a entrada na OCDE – possivelmente será colocado na geladeira, dadas as exigências econômicas e fiscais do ógão, potencialmente restritivas à ação do Estado.

Embora nem sempre a correspondência entre desenvolvimento interno e relações internacionais seja automática, é preciso levar em conta as condicionantes domésticas frente a um mundo em que o mercado de energia pode estar sofrendo uma mudança estrutural, a partir da guerra da Ucrânia, com decorrências inflacionárias vindas de fora e retração econômica nos países centrais a partir do ano que vem.

A recondução do Brasil a uma posição de destaque na cena mundial deverá envolver, entre outras, as seguintes iniciativas:

  1. A construção de uma pauta convergente para questões do clima e do meio ambiente entre os países da América do Sul. Este poderá ser o grande vetor de integração regional. A Amazônia possui a floresta tropical mais extensa do mundo e atravessa nove países (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela). O território brasileiro abrange sua maior parte (61,8% do bioma), mas é, proporcionalmente, o que tem menor território protegido: apenas 42,2%, divididos em espaços indígenas e áreas naturais protegidas;
  2. A integração das políticas de saúde pública na região, que concentrou, proporcionalmente, os mais altos índices de infecção e morte ao longo da pandemia de Covid-19;
  3. O fortalecimento do Mercosul e da Celac e a reconstrução da Unasul como instâncias políticas, econômicas e especificamente comerciais. Deverão também abrir espaço para a participação das sociedades civis de cada país em instâncias específicas;
  4. Reatamento e reconstrução das relações diplomáticas com a Venezuela e reintegração do país aos organismos regionais. Não é possível que o Brasil siga na situação de virtual rompimento institucional com um vizinho que possui 2.200 quilômetros de fronteira;
  5. A reconstrução do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – esvaziado pelos governos Temer e Bolsonaro – como ferramenta para o desenvolvimento, para a internacionalização das empresas brasileiras e para a retomada da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

O Brasil concentra quase 32% do PIB e cerca de 30 % da população da América Latina tem a chance de superar uma triste e destrutiva quadra de sua história, vivida nos últimos seis anos. Não é à toa que a expectativa externa com a eleição de Lula rivalize com as esperanças domésticas e com a derrota da extrema-direita.

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Gilberto Maringoni

Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC e candidato do PSOL ao governo de São Paulo, em 2014

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