Abismo tropical: um ano depois, filme revive pesadelo da eleição de Bolsonaro

Atualizado em 28 de outubro de 2019 às 9:37
O presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL). (Foto: Li Ming/Xinhua)

Publicado originalmente em Brasil de Fato.

Por João Paulo Soares.

Crônica de um pesadelo. Essa é uma das definições possíveis para “Abismo Tropical”, documentário do diretor Paulo Caldas sobre o dia em que Bolsonaro foi eleito presidente da República – 28 de outubro de 2018. O filme estreia nesta segunda-feira (28), exatamente 1 ano depois das eleições, dentro da programação da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O cenário do pesadelo é a Avenida Paulista, tradicional palco de celebrações e manifestações políticas da capital. O diretor e sua equipe filmaram o movimento da avenida nas 24 horas daquele domingo chuvoso e carregado – de meia-noite a meia-noite. A história todos conhecem e ela pode ser contada de muitas maneiras.

A maneria escolhida por Caldas a aproxima de um filme de terror.

Do começo ao fim, a trama se desenrola toda em câmera lenta, em preto e branco e com o som ambiente abafado ou distorcido – provocando no espectador uma sensação parecida com a que muita gente deve ter sentido naquele dia.

“O filme busca um lugar que é a sensação desagradável, doentia, que me atingiu naquele momento da vida e do processo político brasileiro”, conta Paulo Caldas. “Realmente pode ser considerado um documentário de terror”, diz, “mas a curiosidade é que o que está ali é um terror político”, sentencia.

Contribuem para isso imagens realmente aterrorizantes, como as cenas de crianças enraivecidas espancando o boneco do ex-presidente Lula no meio da avenida, após a confirmação da vitória de Bolsonaro.

Paulo Caldas imprime ao documentário um tom intimista, narrando suas angústias, em off, enquanto o dia caminha para o fim e a Paulista vai sendo aos poucos tomada pelos vencedores.

“É uma crônica que se assemelha muito com o formato, a linguagem da literatura, que é o registro de um dia na visão de um autor através das suas próprias sensações”, resume Caldas.

Confira aqui os dias e horários do filme na Mostra Internacional.

Abaixo, a entrevista com o diretor:

Brasil de Fato – Tirando sua própria narração em off, “Abismo Tropical” é um filme praticamente mudo, de som abafado e distorcido, rodado todo em preto e branco e exibido do começo ao fim em câmera lenta. A que se deve essas escolhas?

Paulo Caldas – Todas as opções narrativas e de linguagem vêm da minha pesquisa cinematográfica, que faz parte do meu trabalho desde os meus primeiros filmes. (…) Elas acabam se somando e entrando neste projeto. Eu acho que tem uma influência nele muito forte, eu diria, do cinema russo, o cinema de Eisenstein, um cinema político e muito iconográfico. Essa é uma das influências que eu mais identifico no filme. E acho que esse trabalho não dá pra caracterizar exatamente… Não sei se é um documentário… Acho que ele acaba não sendo nem documentário nem ficção. É uma crônica que se assemelha muito com o formato, a linguagem da literatura, que é o registro de um dia na visão de um autor através das suas próprias sensações e da sua própria personalidade e intimidade.

Você classificaria o filme como um “documentário de terror”?

Acho bastante interessante a observação. Realmente, o filme busca um lugar que é a sensação desagradável, doentia, que me atingiu naquele momento da vida e do processo político brasileiro, uma coisa que se assemelha muito a um pesadelo. Essa sensação minha inclusive, é compartilhada por muitas pessoas que eu conheço, amigos com quem conversei nesse período. Enquanto um filme-pesadelo, ele realmente pode ser considerado um documentário de terror, mas a curiosidade é que o que está ali é um terror político.

De tudo o que você e sua equipe viram na avenida Paulista naquelas 24 horas, qual cena mais te impressionou?

O que mais nos impressionou e o que mais a gente tem intenção de colocar na tela, apesar dos vários temas que se sobrepõem, é a questão das armas e da violência. A apologia à violência, naquele momento, foi fruto da política promovida pelo candidato à Presidência eleito naquele dia, Jair Bolsonaro. Isso nos impressionou muito. As pessoas espancando o boneco do presidente Lula era uma imagem chocante. E o mais aterrador e assustador de todas essas imagens foram as crianças imitando os adultos, fazendo o gesto da arma e também espancando o boneco inflável do presidente Lula. Quando você promove esse tipo de deseducação com as crianças, isso é um fato gravíssimo e realmente provoca imagens assustadoras e impressionantes.

A narração em off tem um tom confessional e se coloca claramente em um dos lados da trincheira. É um retrato daquele momento, carregado das tensões, das ameaças e da desesperança que a eleição de Bolsonaro representava. Um ano depois, você vê espaço para uma narrativa política menos sombria?

Quando a gente fez o filme, há um ano exatamente – e ele é uma crônica política daquele momento do país – a gente estava vendo a vitória do que hoje foi implantado, que é uma política de destruição, de acabar com muita coisa, de perseguição. A instalação dessa política está causando graves danos ao Brasil. As perdas que a gente está passando já nesses 10 meses de governo, algumas são irreparáveis e outras vão ter custo elevado para o país. Além de tudo, o medo, a violência, a truculência, a ignorância e tudo que está sendo plantado por esse governo está provocando uma apreensão, um mal-estar e até uma doença psicológica em muitos brasileiros. Então, um ano depois da eleição e com 10 meses de governo, eu só vejo a situação piorar. Só a resistência e propostas concretas de transformação e mudança podem tirar do poder esse governo que é tão aterrador e destruidor.