Absolvição de Gleisi é um marco, mas ainda falta muito para o Brasil resgatar a democracia. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 20 de junho de 2018 às 9:35
Gleisi Hoffmann (foto de Eduardo Matysiak)

A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal de absolver Gleisi Hoffmann foi um marco histórico. Será vista no futuro como um grito de independência frente a uma aliança que uniu setores do Judiciário e a velha imprensa brasileira, cujo resultado todos conhecem: a deposição de Dilma Rousseff e a prisão de Lula.

A cabeça de Gleisi estava sendo cobrada pelos grupos extremistas MBL e Vem Pra Rua, com muita repercussão em publicações lavajateiras, como o site Antagonista. É o movimento de sempre, mas que, aos poucos, perde força até no publico que antes acreditava na farsa de que o PT foi o protagonista do maior esquema de corrupção da Via Láctea.

A realidade é um problema para quem vive da manipulação da opinião pública. Cedo ou tarde, ela brota, como a semente de um pé de feijão. Continua atualíssima a frase atribuída a Abraham Lincoln: ”pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo.”

Gleisi estava sendo processada sem que a Procuradoria Geral da República apresentasse provas contra ela — eram delações e um vídeo, em que um delator passeava com um policial federal pelas ruas de Curitiba, para mostrar como, supostamente, teria entregue dinheiro vivo a um empresário que teria atuado na arrecadação de fundos para Gleisi.

No passado, se dizia que papel aceita tudo, isto é, a declaração de uma testemunha, registrada por um escrivão através de máquina de datilografia numa delegacia, podia contar qualquer história. Hoje, com um bom roteiro, um vídeo também pode reproduzir qualquer farsa. Basta criatividade e nenhum compromisso com o interesse público. Certas pessoas —a falta de caráter e vocação para participar de linchamentos — continuam as mesmas.

A decisão de ontem do STF de absolver Gleisi é um obstáculo a esse movimento, mas ainda muito incompleto. A Lava Jato é uma farsa que precisa ser desmontada por inteiro, pelo bem da civilização, e esse processo tem dois desafios pela frente. O primeiro é a liberdade de Lula.

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal tem entre seus cinco membros quatro que votaram pelo concessão do habeas corpus a Lula depois da condenação confirmada pelo TRF-4, e é natural que, ao julgarem um pedido de efeito suspensivo da sentença, eles votem de acordo com o pleito da defesa do ex-presidente.

A pressão, porém, para que, contrariando a própria consciência, mantenham Lula na prisão já começou. A colunista Monica Bérgamo reproduz hoje manifestação em off de um dos ministros da corte. Segundo ela, esse ministro acredita que nada mudará com o julgamento da Segunda Turma do STF.

Para proteger sua fonte — o que é natural e correto —, ela não diz que ministro antecipou o voto, mas apostaria que é Celso de Mello, o decano da corte. Ele votou pelo habeas corpus a Lula, por ser doutrinariamente defensor do princípio constitucional de que a prisão só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos. É considerado um constitucionalista do primeiro time.

Mas Mello também tem um comportamento heterodoxo diante de casos de repercussão.

O jurista Saulo Ramos, uma das pessoas mais inteligentes que eu entrevistei, padrinho da indicação de Mello para o STF, registrou em sua biografia uma passagem que resume bem a personalidade do afiliado:

“Terminado seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a Senador. O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — negou-lhe a legenda no Maranhão. Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal.

Naquele momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da República, me telefonou:

— O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, somente estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele, primo do Presidente Collor. Não sei como vai considerar a questão.

— O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, mesmo porque a tese jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta.

Celso de Mello concordou plenamente com a observação, acrescentando ser indiscutível a matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio eleitoral no prazo da lei.

O advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissional. Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da questão: Sarney havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O que há para discutir? É público e notório que ele é do Maranhão! Ora, também era público e notório que ele morava em Brasília, onde exercera o cargo de Senador e, nos últimos cinco anos, o de Presidente da República. Desde a faculdade de Direito, a gente aprende que não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral. E a Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia nenhum prazo para mudança de domicílio.

O sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo Amapá.

Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura do Sarney.

Deus do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribuição do processo para a apreciação da liminar, afirmando que a concederia em favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido no plenário. O que aconteceu? Não teve sequer a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o Presidente que o nomeara, depois de ter demonstrado grande preocupação com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator.

Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando:

— Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.

— Claro! O que deu em você?

— É que a Folha de S.Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou minha vez de votar, o Presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.

Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei:

— Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?

— Sim.

— E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?

— Exatamente. O senhor entendeu?

— Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei com ele.”

Celso de Mello: Saulo Ramos, padrinno dele, não perdoou a “merda” que ele às vezes faz. Foto: EBC

Ontem, Celso de Mello foi o único ministro a acompanhar o voto de Edson Fachin, que absolveu Gleisi do crime de corrupção, mas a condenou pelo crime de uso de caixa 2 em campanha — acusação que não constava da denúncia do Ministério Público Federal. Os dois foram vencidos, para triunfo da justiça, mas esse voto heterodoxo de Celso de Mello indica que ele continua pautando sua conduta não apenas pelo consta dos autos, mas por fatores difíceis de compreender para quem olha o Direito apenas pelo que dizem a Constituição e as leis. Ele é brilhante, todos reconhecem, mas, como observou Saulo Ramos, às vezes faz merda.

O outro desafio que a democracia tem pela frente é a instalação da CPI das delações. Os mesmos atores que queriam a cabeça de Gleisi se movimentam para impedir que a comissão seja instalada.

O que temem?

A CPI tem um fato determinado: o depoimento de doleiros de que pagavam propina a um advogado da panela de Curitiba para ter proteção nas delações, no Ministério Público Federal e na Polícia Federal.

Por que não instalar a CPI?

Só os corruptos temem que a verdade possa brotar nessa CPI. E, se não houver nada que desabone a conduta dos lavajateiros, melhor para eles. Inadmissível é blindar autoridades, porque, como nos lembra aquele filme, A Lei é Para Todos. Ou é apenas para perseguir petistas?