Acadêmicos de Portugal divulgam carta aberta em apoio à educação no Brasil

Atualizado em 22 de maio de 2019 às 20:29
Estudantes e professores universitários protestam contra o presidente Jair Bolsonaro em Curitiba (Foto: Reuters/Rodolfo Buhrer)

Publicado originalmente no Diário de Notícias, de Portugal

A história tem um episódio perturbador. Já se sabia que o governo brasileiro tinha em curso várias medidas polémicas para cortar gastos na educação. E também que o atual ministro do setor, Abraham Weintraub, defende que um dos seus objetivos é “vencer o marxismo cultural nas universidades”.

Não se conhecia, apesar de tudo, a metáfora dos chocolates. Numa apresentação pública das medidas, na quinta-feira, 9 de maio, transmitida em direto pela BTV (Boslonaro TV), tudo foi explicado de uma forma pouco habitual. O ministro Weintraub, sentado ao lado de Bolsonaro, numa mesa, começa a explicar para as câmaras assim: “Tem muita gente que está espalhando o terror.” Os chocolates entraram logo na conversa.

“O senhor gosta de chocolates, Presidente?”

“Sim, upa. Não gosto de tomar chocolate [um trocadilho com a expressão futebolística, que significa sofrer uma goleada], mas de comer chocolates eu gosto. Ainda mais de graça”, responde Bolsonaro.

Continua o ministro: “Não existe nada de graça, alguém paga. Oferecer chocolate para marmanjo eu tou fora. Esse dinheiro vem do seu bolso, porque você paga imposto para comprar chocolates.”

O resto da história está neste vídeo oficial, onde o tema das universidades começa aos 16 minutos.

O que são, afinal de contas (porque o argumento é económico), os bombons espalhados na mesa onde falam os governantes? São o orçamento das universidades federais. E o ministro garante que os cortes são apenas uma pequena parte. As universidades federais, atingidas pelos cortes, não têm a mesma opinião. A do Rio de Janeiro diz ter sido privada de 41% do seu orçamento, por exemplo.

Os cortes em filosofia e sociologia

Mas a história tem outro lado, ainda mais polémico. Bolsonaro anunciou também que o governo “estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”. “O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”, explicou o Presidente do Brasil num tweet. A que acrescentou outro argumento: “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta.”

Tudo isto fez com que nascesse um protesto de alunos e professores universitários, revoltados com a tentativa de bloquear financeiramente as ciências sociais.

Originou, também, um movimento de solidariedade em Portugal. A carta aberta que o DN divulga na íntegra foi proposta por um grupo de académicos, como André Barata (filosofia, UBI), Irene Pimentel (história, UNL), Miguel Vale de Almeida (antropologia, ISCTE), Renato do Carmo (sociologia, ISCTE). E foi subscrita pelas principais associações nacionais de investigadores em ciências sociais e humanas: a Sociedade Portuguesa de Filosofia (SPF), a Associação Portuguesa de Sociologia (APS) e a Associação de Portuguesa de Antropologia (APA).

A carta, que o DN divulga abaixo, está também aberta à subscrição pública.

As associações portuguesas manifestam-se de forma clara: “Repudiamos a recriminação ideológica e desqualificante de colegas por serem historiadores, filósofos, sociólogos, antropólogos, ou, de forma mais genérica de Humanidades e Ciências Sociais. É uma gravíssima cedência ao obscurantismo e que ganha contornos persecutórios civicamente inadmissíveis ao ser protagonizado pelos mais altos responsáveis do governo federal do Brasil, a começar pelo próprio Presidente da República e pelo próprio ministro que tutela a ciência.”

O “padrão” dos regimes autoritários

Ao DN, João Teixeira Lopes, sociólogo e dirigente da APS, explica por que vê, com preocupação, o que se passa no Brasil. Não se trata de “uma exceção ou bizarria, antes um padrão”. “A propagação de uma ideologia de “fatos alternativos” baseados na exaltação do ódio, do ressentimento e da frustração social tem hoje particular relevância por estar a tornar-se um dispositivo sistémico que explora, com centralização de vastos recursos (políticos, económicos e simbólicos), condições de receção altamente favoráveis para cimentar regimes autoritários.”

Irene Flunser Pimentel acrescenta que esta é uma posição que pretende alertar a opinião pública portuguesa. “Com esta carta aberta esperamos em primeiro lugar abalar a opinião pública portuguesa, também universitária, preocupada com os ataques desferidos às disciplinas sociais e humanas, bem como à História, habitualmente instrumentalizada por regimes com propensão para o autoritarismo, entre os quais se conta o de Bolsonaro.”

Para a historiadora, “é através das ciências sociais e humanas que aprendemos a pensar, comparar, ler, interpretar, comunicar e escrever” e isso tem um alcance maior que a universidade. “Através delas, debatemos sobre os valores, a começar pela liberdade, bem como reflectimos sobre o passado e actuamos no presente.”

Tudo isso ajuda a explicar por que são as ciências sociais o alvo escolhido para este “combate cultural”.

José Meirinhos, presidente da SPF, acrescenta: “O que está a ocorrer no Brasil afeta toda a comunidade académica, que hoje não tem fronteiras.” Nem há fronteiras para este tipo de jogada política, acrescenta: “As palavras do Presidente do Brasil e do seu Ministro da Educação são suscitadas apenas por vontade de vingança e retaliação em relação ao mundo académico. Todos sabemos que se tivesse sucesso, que não terá, a seguir seriam cerceadas outras áreas do saber: para que serve a matemática pura? e a ecologia? e a astronomia? e a cosmologia? e a literatura ou a poesia? e a investigação sobre vacinas? Se querem que os brasileiros se deixem guiar por um guru ou dois deformados pela astrologia e conspirações, estão muito enganados.”

Daí a importância da solidariedade dos universitários de outros países. “Todas as grandes universidades europeias e americanas têm relações com a investigação brasileira nestes domínios. E isso tem um enorme retorno social e económico. A comunidade académica internacional precisa do contributo que o Brasil tem dado, continua e continuará a dar nestas áreas. Reagir a estas ameaças arbitrárias e infundadas é também dizer aos nossos colegas brasileiros que a sua voz é ouvida e respeitada e que continuamos a contar com eles e que podem contar connosco.”

“A retórica do “retorno imediato” é um sofisma para controlar politicamente as ciências sociais e humanas”

André Barata vê outro problema nos argumentos de Jair Bolsonaro. “Exigir retorno imediato a quem estuda literatura ou filosofia, investiga história ou fenómenos sociais e culturais é dizer-lhes, pouco disfarçadamente, que não devem fazer nenhuma dessas coisas sem o favor de quem lhes paga, pois nenhuma dessas atividades tem retorno imediato.”

Para o professor de Filosofia, que tem vários projetos com colegas brasileiros, o objetivo do governo brasileiro “é dizer que as ciências sociais e humanas não devem guiar-se apenas pelo conhecimento, muito menos exprimi-lo livremente”. E conclui: “E assim, ironia das ironias, quem mais apregoa o direito ao politicamente incorreto na verdade censura o pensamento livre e condiciona a autonomia das ciências sociais e humanas. A retórica do “retorno imediato” é um sofisma para controlar politicamente as ciências sociais e humanas, eliminando a sua autonomia.”

Miguel Vale de Almeida, antropólogo, começa por explicar a sua relação com o Brasil. “Eu devo imenso ao Brasil (pela pesquisa que lá fiz, pelos convites a participar no desenho de políticas de igualdades e em múltiplos foruns, académicos e sociais) e às universidades públicas brasileiras, pelo acolhimento do meu trabalho, pelo entusiasmo de colegas e alunos, pelo envio de dezenas e dezenas de bolseiros sanduíche, pós-docs e outros que enriqueceram o meu departamento e o meu centro de investigação – e que contribuíram para a produção de conhecimento em língua portuguesa.”

Essa memória leva-o, por fim, a ironizar. Terão Bolsonaro e o seu ministro razão? “Têm paradoxalmente razão os fascistas no poder ao dizerem que as ciências sociais mudaram o Brasil, pois mudaram-no para melhor, analisando e criticando as desigualdades estruturais e históricas da sociedade, e contribuindo com propostas de políticas públicas que libertaram milhões de brasileiras e brasileiros – justamente o efeito que assusta as elites e, sobretudo, os seus capatazes, os seus capitães (do mato), que são os primeiros a interiorizar e a transformar em programa ideológico o ódio aos pobres, aos negros, aos índios, às mulheres, e aos LGBT.”

O raciocínio do antropólogo termina com outra figura de estilo, o paradoxo. “Se fosse fascista eu começaria por destruir as ciências sociais e as humanidades nas universidades e, logo a seguir, as próprias universidades.”

A carta aberta

A Sociedade Portuguesa de Filosofia, a Associação Portuguesa de Sociologia e a Associação de Portuguesa de Antropologia têm acompanhado, com apreensão cívica e consternação intelectual, a degradação profunda da situação pública a que estão a ser sujeitos nas áreas científicas que representamos colegas do Brasil, suas instituições e mecanismos de trabalho.

Repudiamos a recriminação ideológica e desqualificante de colegas por serem historiadores, filósofos, sociólogos, antropólogos, ou, de forma mais genérica de Humanidades e Ciências Sociais. É uma gravíssima cedência ao obscurantismo e que ganha contornos persecutórios civicamente inadmissíveis ao ser protagonizado pelos mais altos responsáveis do governo federal do Brasil, a começar pelo próprio Presidente da República e pelo próprio ministro que tutela a ciência.

Como notava um dos mais prestigiados e influentes intelectuais que o Brasil deu ao mundo, Paulo Freire, o óbvio tem de ser repetido, por óbvio que seja, para que não seja esquecido. Não há sociedades livres sem pensamento livre e não há pensamento livre limitando, condicionando ou vigiando a actividade científica das ciências sociais e humanas.

Vimos assim, os abaixo-assinados, instar as autoridades responsáveis no Brasil que, com a máxima urgência, seja interrompido o bloqueio orçamental às universidades de Brasília, Federal da Bahia e Federal Fluminense, bem como a asfixia moral, política e financeira em curso das actividades docentes, de investigação e de transferência de conhecimento nas áreas científicas das Ciências sociais e humanas.