“Acordo UE-Mercosul é muito ruim. Bolsonaro ameaça a humanidade”, diz ao DCM diretor de ONG francesa

Atualizado em 4 de julho de 2019 às 16:04
Samuel Leré

Samuel Leré é advogado da Fondation Nicolas Hulot pour la Nature et l’Homme, fundada pelo ex-ministro francês do meio ambiente no governo Macron. Leré já viveu no Brasil, mas defende defende sanções contra o país que conhece atualmente um aumento inédito no desmatamento. “Jair Bolsonaro conduz no Brasil uma política sobre os direitos humanos e o meio ambiente que é muito perigosa e ameaça a humanidade”, explica.

Ele aponta que não apenas a organização da qual faz parte mas a sociedade civil francesa vive hoje uma união global contra a ratificação do acordo com o Mercosul. Ele afirma que a única exceção é das grandes empresas, que são na visão dele o verdadeiro público-alvo, “em detrimento do meio ambiente e da agricultura”. Nesta entrevista para o DCM, ele explica por que o acordo entre União Europeia e o Mercosul, assim como o Acordo de Paris, são um fracasso na proteção ao meio ambiente e à vida.

DCM: Como você vê o acordo entre a União Europeia e o Mercosul?

Samuel Leré: Nós pensamos que é um acordo muito ruim. Primeiro porque Jair Bolsonaro conduz no Brasil uma política sobre os direitos humanos e o meio ambiente que é muito perigosa e ameaça a humanidade, em especial sobre o desmatamento. Nunca houve um desmatamento tão grande como desde a chegada de Bolsonaro nesses últimos anos.

Então é a urgência, para nós, não é dar vantagens comerciais aos países do Mercosul e ao Brasil mas de fazer Jair Bolsonaro compreender que sua política não é aceitável. Nós pensamos que é preciso não apenas recusar esse acordo, mas prever sanções comerciais contra o Brasil enquanto o Brasil não respeitar seus engajamentos do Acordo de Paris, que são de chegar a zero desmatamento.

Você confia no poder da União Europeia de impedir Bolsonaro de desmatar a floresta amazônica e de permitir a entrada na UE de produtos cheios de pesticidas, assim como bovinos criados em condições que não respeitam as normas europeias?

Lemos o acordo politicamente e o que percebemos, por enquanto, é que, mais uma vez, como todos os acordos assinados pela União Europeia atualmente, não há nenhum engajamento obrigatório. Quer dizer que todas essas medidas, quando se fala em desmatamento, no capítulo sobre desenvolvimento sustentável, não há nada obrigatório.

Enquanto no resto do acordo, tudo que se refere a pesticidas e à agricultura de uma forma geral tem obrigações. Por isso não confiamos na União Europeia. Inclusive, as regras fitossanitárias do Brasil são bem diferentes das da União Europeia. Importam-se muitos produtos agrícolas do Brasil, que são produzidos com pesticidas que são proibidos aqui. Ou, em relação à carne, há regras diferentes. No Brasil, pode-se usar antibióticos de crescimento, que são proibidos aqui.

Por qual razão a União Europeia quer este acordo?

Porque a Comissão atual tem como objetivo único o comércio. E que o clima e a biodiversidade passem a um segundo plano. Hoje, o Brasil, de um modo geral, é um mercado relativamente fechado com altas taxas aduaneiras. Então, eles imaginam um grande terreno econômico. E o que nós vemos são riscos para o meio ambiente e os direitos sociais.

Qual mensagem a União Europeia transmite ao celebrar tal acordo?

Por enquanto foi a Comissão Europeia que o validou. Vamos esperar o voto dos Estados-membros. Sabemos que, na França, o voto do presidente da República e da França está longe de estar ganho. De todo modo, pensamos que esse acordo é inaceitável e que a urgência hoje é impedir Bolsonaro de continuar sua política de desmatamento. Não é validando um acordo comercial que poderemos avançar nesse tema.

O governo Macron justamente diz não estar pronto para ratificá-lo. Como você avalia sua posição?

No G20, o presidente da República se disse favorável. Depois, deputados do partido En Marche e o Ministro da Agricultura disseram não ser favoráveis. Vamos esperar uma posição oficial. Para nós, o momento crucial será o voto no Conselho. E veremos se a França fará como ela fez com acordo com os Estados Unidos, votando contra, o que permitirá de suspender o acordo, ou se ela vai validá-lo, como fez com o Canadá, Singapura e Vietnã.

O acordo com o Canadá tinha críticas semelhantes. E como você avalia a posição da França? A tendência é de repeti-la ?

Para nós, é a mesma coisa que com o Mercosul. Convocamos os parlamentares franceses a votarem contra a ratificação do CETA (acordo UE-Canadá) no dia 17 de julho. Há coisas semelhantes. Os itens sobre desenvolvimento sustentável, todas as cláusulas ambientais não são obrigatórias.

O CETA tem 1598 páginas, 13 sobre o meio ambiente, nenhuma linha obrigatória. O que nos preocupa particularmente é que as eleições no Canadá estão se aproximando e o candidato que poderá se tornar o primeiro-ministro é um climato-cético que votou contra o Acordo de Paris.

O que você pensa da declaração de Angela Merkel, de que não ratificar o acordo não vai garantir a proteção ao meio ambiente?

Nós pensamos que isso é absolutamente falso. Hoje, o Brasil, apesar dos engajamentos que ele não respeita, notadamente pelo desmatamento, se compararmos o governo Temer e o governo Bolsonaro, houve um aumento de 60% do desmatamento em menos de um ano. Então não vemos em que um acordo com cláusulas não obrigatórias obrigaria o Brasil a manter seus engajamentos.

Centenas de associações e ONGs criticam esse acordo, que gera debates também na imprensa francesa. Como você percebe a reação da sociedade civil francesa?

O que é interessante é que há uma unidade da sociedade civil. Todos os sindicatos agrícolas, as associações de consumidores, as associações ambientais, as associações de solidariedade. Há uma unidade global contra esse acordo. Os únicos a defenderem esse acordo, na sociedade civil, são as grandes empresas.

Então vemos que, mais uma vez, esse é acordo é feito para defender os interesses das grandes empresas em detrimento do meio ambiente e da agricultura. Temos um fronte unido sobre esse tema.

No Acordo de Paris, como você disse, o Brasil não respeita seus engajamentos e nada acontece contra ele, nada é feito para pressioná-lo. Qual a sua visão sobre isso?

Temos uma organização mundial que, quando falamos de direitos humanos, de meio ambiente, os objetivos não são obrigatórios. E quando se fala de finanças, de economia, as questões são muito mais obrigatórias. Pensamos que o direito ambiental e social deve estar acima das regras econômicas. Precisa-se inverter as relações.

O comércio, para nós, é o melhor meio para impor o respeito aos direitos sociais e ambientais. Se amanhã assinássemos um acordo com o Mercosul, ou com outros países, e houvesse uma cláusula dizendo que “se você não respeita os engajamentos climáticos, suspendemos o acordo”, aí tudo mudaria. Esse é o nosso objetivo hoje.