Acredite: Eu também apoio a prisão em segunda instância. Por Lenio Streck

Atualizado em 28 de novembro de 2019 às 8:24
Justiça. Foto: Gil Ferreira/CNJ

Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)

POR LENIO STRECK,  jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

A manchete parece fake news. Porém, é necessária para demonstrar as falsas narrativas que se espalham todos os dias. Não, o título não é falso. Sou a favor da prisão em segunda instância. Só peço que tenham a pachorra de lerem até o final.

Escrevo isso porque o “fator Sardenberg” (esse “grande jurista” da terceira turma do GloboNews Supreme Court) parece estar vencendo a batalha. De fato, a grande mídia, somada às neocavernas do WhatsApp e Twitter (atuais células terroristas de ignorância artificial – C.T.I.A.) está convencendo parlamentares a virarem o jogo da presunção da inocência no tapetão. Ou seja, diz-se, à boca grande, que a decisão vinculante do STF “deve” ser revertida por PEC ou por alteração de lei ordinária. Até o dólar estaria nesse alto patamar por causa da decisão do STF. Afinal, Sardenberg foi quem disse…!

Vale tudo nessa batalha. Há uma PEC que é um perfeito strike jurídico. Para obrigar prisão em segunda instância, vale até mesmo destruir a tradição dos recursos especiais e extraordinários. Patético. O que colocar no lugar? Um tsunami, “tipo” ação rescisória? Pergunta-se: vai ter efeito suspensivo no pedido de rescisória quando se tratar de dívida tributária? Ou a liberdade vale menos que o patrimônio?

Há também a tentativa de alterar o artigo 283 e outros dispositivos do CPP. Problema: ambas as teses violam a cláusula pétrea constante no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal (sobre o assunto ler aqui).

Por tudo isso, peço ao Parlamento que tenha calma. Peço que não façam nada errado. Consultem um constitucionalista. E parem de dar ouvidos ao ministro da justiça, Sergio Moro, que claramente conspira contra a decisão do STF. Um ministro da justiça que não aceita uma decisão da Suprema Corte. A notícia da TV de terça-feira, dia 26 último: “Moro diz que temos de ter prisão em segundo grau”. Eu retruco: Moro não conhece Direito Constitucional. Registro importante: Gerson Camarotti informa, com exclusividade, na Globo News Supreme Court: “Bastidores: Moro diz que os dois projetos — PEC e alteração do artigo 283 — são constitucionais”. Ah, bom. Se Moro disse, então posso dormir tranquilo, pois não?

Falei no seminário da ConJur no auditório Nereu Ramos dia 26 (são os 20 minutos finais do vídeo anexo – assista aqui). Mostrei que eu, o STF e todas as pessoas racionais somos a favor da possibilidade de que se prenda em segunda instância. Surpreso com o que acabei de dizer, leitor?

Pare, tome uma infusão de rubiácea e prossiga na leitura.

Sigo. Mas, se é assim, por que essa onda toda? Por que Moro conspira contra a decisão do STF? Por que o Parlamento gasta tanta energia nesse tema?

Explico: eu, o STF, parlamentares e juristas que sabem ler, compreendem facilmente que a decisão das ADCs não proibiu a prisão em segunda instância. Quem espalhou essa lenda urbana de que a decisão do STF traria o caos é pessoa ingênua ou não tem boa fé.

Repito: nunca esteve proibida e não está proibido que se prenda pessoas condenadas em segundo grau. Foi manchete no jornal Estadão na segunda-feira: “Maioria do parlamento é a favor da prisão em segunda instância”. É? Pois eu também sou. O que não está dito é que o que muita gente está querendo — e não conta tudo — é automatizar TODAS as prisões no segundo grau. Como constava na revogada sumula 122 do TRF-4. Esse é o plano de Moro. Para isso, está disposto a rasgar a Constituição e desmoralizar a decisão vinculante em ADC do STF. Repito: o Supremo nunca proibiu a prisão em segunda instância. Nem em primeira, ora! O ponto é que Moros, Deltans e Carvalhosas (e Sarbenbergs, e Camarottis…) querem tornar a prisão obrigatória. Esse é o pulo do gato.

Isso tem de ser dito e denunciado. Estamos perdendo a guerra das mídias. Lutamos três anos para conseguir corrigir a decisão de 2016 do STF. E agora corremos o risco de perder para uma narrativa. Uma falsa narrativa. Tudo porque no meio está o personagem Lula. Esquece-se que, quando ingressamos com as ADCs, Lula nem réu era. Nem investigado. Mas, além do terraplanismo, voltamos a ignorar o heliocentrismo. O Brasil de 2019 segue o lulocentrismo. Tudo é Lula. O centro do universo que buscavam aqueles que precisam de um bode expiatório para rasgar a Constituição.

Vamos falar a sério. Esse é o leitmotiv de parlamentes — e de Moro — arriscarem até mesmo a extinguir o recurso especial e o extraordinário. Não se importam de jogar fora a água suja com a criança dentro.

Disse-se que seriam 190 mil presos a serem liberados. Mentira. Assassinos e estupradores seriam soltos. Mentira. Ainda ontem vi um ex-desembargador postar em rede social que um latrocida, condenado em segundo grau, poderá recorrer em liberdade graças à decisão do STF. Isso se chama terrorismo digital. Fake News. Ou, em bom português: mentira. Simples.

Onde está o caos? No RS, por exemplo, até agora foram liberados 3 réus. E nenhum de crime violento. Na Lava Jato, consta terem sido 8. No resto dos Estados, não sei. Boa pauta para o ConJur. De novo, preclaros parlamentares, onde está o caos? Respondo. Eu sei onde está o caos. Caos é o sistema penitenciário brasileiro, já julgado como em Estado de Coisas Inconstitucional.

Caos é esse estado em que verdades já não há, só há narrativas.

Aliás, o ministro Moro, que circula, lépido e fagueiro, entre parlamentares articulando contra a decisão vinculante do STF, em vez de estar em outdoors propagandeando o Pacote Anticrime (parece o tal “MP Pró-Sociedade… existe um MP contra ela? E “anticrime”? Alguém é a favor do crime?! Genial: proibamos os crimes. Resolvido está.), deveria mandar um projeto para tornar o sistema prisional em Estado de Coisas Constitucional. Porém, ao contrário, quer colocar mais e mais pessoas nas prisões, ditas, conhecidas e reconhecidas como masmorras medievais por gente de tudo que é nível e autoridade.

Para quem tem dúvida do que estou falando sobre o conceito de presunção da inocência e a possibilidade de prisão em segunda instância, leia o que escrevi no artigo Juiz boicota STF ao soltar condenado a 29 anos! E Mazloum salva o dia!, em que mostro o modo como é possível fazer a coisa certa: estando presentes requisitos de prisão cautelar, o réu, condenado em segunda instância, não pode recorrer em liberdade para o STJ e STF. Poderão recorrer em liberdade os que não estiveram “bajo” tais requisitos. Insisto: leiam o artigo acima. Ali explico isso tudo tim-tim por tim-tim.

Qual é o problema, então? Por que o Parlamento quer arriscar chamuscar a própria institucionalidade, alterando decisão vinculante do STF, só para satisfazer um capricho? Vejam o risco. Imaginemos que o Parlamento viole a cláusula pétrea e aprove uma PEC ou altere o CPP. Imaginemos que o STF diga que essa alteração é inconstitucional. E o parlamento faça de novo. E assim por diante. Um modo contínuo que leva a uma crise institucional.

É o paradoxo da solução que nada soluciona. Como essa gente que cai na ideia de Constituinte. Ora, se não se obedece a esta que temos, e é uma das mais democráticas do mundo, por que haveriam de obedecer à nova? Mais: demonizam o Parlamento e pedem Constituinte. Quem vai elaborar? Parlamentares da Dinamarca? (Ou da Hungria? Esse é novo modelo, não?)

Então, de novo: é mentira que o STF tenha proibido prender em segunda instância. É mentira dizer que “temos de votar PEC para permitir prisão em segunda instância”. Mil vezes mentira. Ao dizer isso, Moro mente. Parlamentares mentem. Juristas que dizem isso mentem. Jornalistas e jornaleiros, ao espalharem essas mentiras, prestam desserviço à democracia.

Por isso, afirmo: sou a favor da prisão em segunda instância. Como o STF. Pelo simples fato de que nunca foi proibida. Havendo requisitos, cabe sempre prender. O STF não proibiu. O problema é que querem tornar obrigatório aquilo que apenas está permitido, conforme decidido nas ADCs, cujo efeito é vinculante: Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Ou seja, o amaldiçoado artigo 283, julgado constitucional pelo STF, não proíbe prender em segunda instância. Aliás, não proíbe em instância nenhuma. Apenas garante a presunção da inocência.

Viram, deputados e senadores? Viu, Sardenberg? Parem de jogar para a torcida. Amanhã essa torcida torcerá para outro time. E a metade estará afundada nas redes neocavernosas, espalhando fake news. Nem se importarão com vocês. E se reabrirem os bingos, então…

O resto é uma deslavada mentira. No tribunal da história, serão lembrados como conspiradores contra as instituições.