“Acredito nas potencialidades do povo, mas é preciso que ele se organize”, diz Dom Angélico Bernardino. Por José Cássio

Atualizado em 15 de outubro de 2016 às 20:37
Dom Angélico
Dom Angélico

 

Assistindo à homilia de 7 de setembro de Dom Angélico Sândalo Bernardino, na basílica de Aparecida (veja no pé deste texto), fica nítido os motivos que levaram os seguidores de Olavo de Carvalho a investirem numa cruzada contra a doutrinação comunista que, dizem, o Bispo Emérito de Blumenal e líder da Pastoral Operária, representa.

Em seu sermão, no qual critica o sistema capitalista e sua lógica de acúmulo de riquezas, logo se vê seu posicionamento em defesa dos mais pobres. Dom Angélico tem um estilo de vida simples.

Fui recebido por ele nesta quinta-feira chuvosa, em sua casa geminada de três andares na Vila Brasilândia, um dos bairros mais pobres de São Paulo. Conversamos sobre a conjuntura brasileira e o que o futuro guarda para o Brasil.

Apesar de um cenário que caminha desfavorável aos mais pobres, Dom Angélico tem esperança no povo.

Acredita que, com a mobilização dos movimentos sociais vai acontecer o que seus olhos viram nos anos finais do golpe de 1964: o poder do povo nas ruas derrotando um governo ilegítimo. 

DCM – Qual é a avaliação que o senhor faz da nossa conjuntura política e social?

Dom Angélico – Precisamos colocar o texto no contexto para não virar pretexto. Estamos em uma nova época e o mundo está mudando.

Aquela bipolaridade entre União Soviética e EUA e os movimentos de libertação da América Latina, tudo isso, na nova época, caiu por terra. Estamos hoje também em um dos ciclos de crise do capitalismo liberal.

No Brasil atual, vivemos uma crise que é a fundamental crise do capitalismo.

Lamento que a grande imprensa e certos políticos no Brasil não percebam isso. Não é o Brasil somente que está em crise política, e não é o governo do PT que é o responsável primeiro por ela, porque, na realidade, França, Itália, Portugal, Espanha, Grécia, para citar alguns países da Europa, vivem uma crise econômica muito grande, que é a crise cíclica do capitalismo liberal, e estamos também nessa situação, acompanhada também de uma grande incerteza política.

Mas o Brasil é maior que isso tudo. É mentira que estamos imersos a maior crise da nossa história. A burguesia, aqueles que têm muito dinheiro neste país, continua viajando.

Na realidade, o que estamos vivendo é uma crise política que se serviu de desacertos do governo do PT para dar um golpe parlamentar.

Aliaram-se o PMDB, que fazia parte do governo, e o PSDB, que perdeu as eleições, para a maioria do parlamento dar um golpe, que foi educado e disfarçado.

Não é a primeira vez que vejo isso, porque em 1964 rasgaram solenemente a Constituição, dando os mais deslavados motivos. Devo dizer que, aliado a esses partidos e a outros agregados, também está grande parte do empresariado.

Não é por descuido, por exemplo, que a FIESP patrocinou publicações enormes na imprensa nacional. Não é por descuido que ela também acolheu aqueles que estavam gritando na rua pelo impeachment.

Então, aliado ao parlamento e ao empresariado forte, houve o que estamos vivendo no momento.

DCM – Qual é a relação que o senhor faz dos dois momentos que o senhor chama de golpe, em 1964, e agora?

Dom Angélico –  Aqueles que fazem parte do dinheiro, que são donos do capital, estiveram em 1964 alinhados aos militares.

Serviram-se deles com a desculpa de que o Brasil estava prestes a cair no domínio comunista, o que não é verdade, e deram um golpe no governo de João Goulart. Foi um golpe civil-militar, e agora também foi um golpe civil-parlamentar dos interesses do capital.

No fundo, é o dinheiro que comanda.

Quando se fala, por exemplo, de corrupção, e é lamentável que haja corrupção no Brasil e não diminui em nada o peso da culpa quando digo que no mundo todo há corruptos, não adianta a gente somente calcar a responsabilidade no poder político, porque do outro lado está o poder econômico que corrompe parte desse poder.

Há um compadrio muito grande. O poder econômico é insaciável. Basta que a gente veja para a gente acabar se acostumando.

Quanto é que ganha um juiz do Supremo Tribunal Federal? Quanto é que ganha um senador ou um deputado hoje no Brasil? Acrescenta-se a isso as mordomias e passamos de R$ 100 mil por mês. Quanto está ganhando o assalariado do mínimo? Não chega nem a R$ 900.

Nos acostumamos com essa iniquidade. Isso é realmente o capitalismo liberal que cria, essa convivência nefanda da injustiça com o silêncio alienado da multidão. 

DCM – Sabemos qual foi o desfecho do golpe de 1964. Na visão do senhor, qual é o quadro que se desenha para o futuro do país?

Dom Angélico – Sem dúvida alguma a direita avança, na política e na economia. Tenho certos temores de que não mexam nos privilegiados do capital.

Tenho medo de que comecem a onerar o povo já sofrido, tenho medo de que, nessas reformas, eles amputem ainda mais a educação e a saúde, e que os miseráveis, que decresceram nos últimos anos, aumentem.

Não pense alguém que eu esteja com alguma simpatia pelo regime comunista, porque quando a gente fala em justiça contra o domínio do capitalismo liberal, penso que tenho ideias de socialização e que as riquezas destinadas por Deus para toda a humanidade sejam usadas por toda ela.

Não é certo que alguns vivam como marajás na República e outros vivam nas favelas e grandes aglomerados humanos.

Acredito nas potencialidades imensas do povo, mas é preciso que ele se organize. Dos movimentos populares da Igreja, que, como disse o Papa Francisco, ela realmente vá às periferias humanas e geográficas.

Temos muita presença, mas precisamos de uma presença maior e, sobretudo, a conscientização e formação política do povo, porque ele é enganado.

Precisamos de um trabalho de educação política, sem o qual não há democracia autêntica.

Muita gente bate palma porque o prefeito de São Paulo foi eleito com mais de 50% dos votos, mas e a porcentagem dos que se declararam votando nulo?

Essa porcentagem é muito maior do que a porcentagem que elegeu o prefeito, e isso não faz com que a gente pare para pensar que tipo de democracia estamos vivendo.

Vivemos em uma democracia manobrada por aqueles que são donos do poder, como a imprensa, que está mancomunada com o poder econômico, e também o parlamento.

DCM – Uma análise de setores progressistas entende que a Justiça tem se ocupado de fazer uma perseguição a Lula e ao PT em detrimento de seus adversários. Por exemplo, uma delação que serve para incriminar Lula não serve para cobrar postura de Aécio Neves ou do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Como o senhor analisa isso?

Dom Angélico – Tenho um entusiasmo pela ação da polícia, que realmente está em cima da corrupção como nunca tivemos. A partir do governo do Lula, começamos a ter esse trabalho. A desgraça é que, em grande parte, ela acaba sendo tendenciosa. E não é só aí. Temos visto declarações de cidadãos que fazem parte do Supremo Tribunal Federal que melhor seria se eles ficassem quietos. Queremos é que sejam juízes imparciais.

O que a imprensa publica contra certas pessoas e certos partidos, e não o faz a respeito de outros, é um exercício realmente parcial e corrompido.

Fala-se muito de corrupção e isso é corrupção também: da Justiça e dos meios de comunicação.

Eles querem demonizar um partido e, como você citou, o que se atribui de erros à presidente que foi golpeada, a gente pode examinar coisas semelhantes em outros presidentes, que fizeram até pior, ou até em outros políticos.

O que se espera é que a Polícia Federal continue o seu trabalho, mas que evite toda e qualquer parcialidade.

Não se pode simplesmente ter dúvidas e certas convicções e lançar isso como fato consumado, ou seja, qualquer acusação feita a qualquer cidadão, desde o Presidente da República até o coletor de lixo, deve ser baseada em fatos e provas.

A imprensa noticia, na página primeira e em títulos garrafais, que determinado partido ou político fez isso ou fez aquilo, sem ouvi-lo antes e sem examinar provas.

Estamos vivendo, na minha opinião, ao lado dos méritos da investigação, um verdadeiro e deplorável circo no qual a Justiça também está envolvida.

DCM – Há quem faça uma diferenciação entre “poder” e “governo”, colocando o governo em uma posição administrativa, inferior. 

O poder seria o arcabouço que rege os destinos da sociedade, incluindo a justica, os meios de comunicação, o pensamento estratégico e a própria estrutura administrativa, que alterna de tempos em tempos.

Foi assim com Vargas, agora com o Lula.

Por essa lógica, há quem acredite que este o novo ciclo do conservadorismo deve durar de 30 a 40 anos, até uma nova reconciliação do governo com as classes populares. O que o senhor pensa disso? 

Dom Angélico – Acho que precisamos urgentemente de uma reforma política, mas que não seja levada avante pelo parlamento, porque ele está viciado.

Há pessoas há vários mandatos e que têm o filho e o neto ali.

É um compadrio e tudo isso precisa de uma mudança muito séria. Precisamos também rever os partidos políticos. São 32 partidos e, se me perguntarem para elencar os nomes, nem metade eu consigo.

Depois, os partidos políticos precisam ter programas definidos que devem ser cumpridos.

Temos um carnaval durante as eleições em que se prometem mundos e fundos e, depois, se nega tudo.

O trânsito de um partido a outro parece uma feira, de forma que precisa realmente haver uma mudança no exercício de poder do Executivo, mas também dos eixos nativos deste país.

Não acredito que precisamos de 30 anos. No mundo em que estamos vivendo, em que acontecem descobertas nos meios de comunicação e há facilidade de comunicação, a transformação é bem mais rápida.

Acredito que haverá um movimento, através dos sindicatos, que não podem ser partidarizados como estão, para que realmente se voltem aos interesses da classe trabalhadora. É preciso que os movimentos populares tomem impulso e se organizem.

Sempre digo o seguinte: “Ninguém resiste o povo na praça reivindicando mudanças”. Se é para ser reforma agrária ou reformas na saúde e na educação, se colocamos um milhão de pessoas na praça em cima de bandeiras concretas, não há poder que sobreviva.

Eu acredito nisso, porque vejo o Brasil com muita esperança.

DCM – O senhor fez um sermão dia 7 de setembro em defesa dos direitos dos trabalhadores, mas de lá para cá a coisa caminhou bem desfavorável a eles e tende a piorar com a reforma da Previdência e a desvinculação do salário mínimo. Qual sua avaliação em relação às reformas? 

Dom Angélico – Vamos lançando sementes de esperança, de tal forma que, agora, neste momento em que estamos vivendo, realmente o que impera é a opção pelas soluções da direita, que não está preocupada com a sorte do povo.

O que eu gostaria de ver é a reforma da Previdência começando do alto, e não da classe trabalhadora, e outras reformas também, que atingissem realmente as empresas, os políticos e os magistrados.

Porém, acredito que o povo vai se conscientizar e se unir, porque eu vi o que aconteceu em 1964.

Eu era padre e jornalista, o jornal em que eu trabalhava foi fechado, houve edições confiscadas e inúmeras vezes eu fui convocado a vir a São Paulo para fazer depoimento a respeito de arquivos publicados que defendiam os interesses da classe trabalhadora.

Lembro que, naquela ocasião, dei uma entrevista dizendo que os militares não ficariam no poder mais do que dois ou três meses, e eles acabaram ficando por 20 e tantos anos.

Foi um equívoco histórico, mas fomos nos organizando, o povo foi se organizando lentamente, e fomos às ruas.

Devagarinho, foi crescendo e o regime militar caiu.

Outros regimes de força e de mentira, baseados na injustiça e não no bem comum, não têm vida longa. Essa é minha esperança.