Adotado por planos de saúde, ‘kit covid’ não tem eficácia e pode prejudicar o paciente. Por Felipe Mascari

Atualizado em 22 de julho de 2020 às 16:13
Médico explica que, apesar dos medicamentos serem prescritos para outras doenças, não significa que seja seguro para o tratamento da covid-19. Ele relata diversos casos de pacientes com arritmia cardíaca após tomarem a hidroxicloroquina. Foto: Reprodução

Publicado originalmente no site Rede Brasil Atual (RBA)

POR FELIPE MASCARI

Em debate realizado na manhã desta quarta-feira (22), especialistas criticaram hospitais privados e planos de saúde que têm ministrado o chamdo “kit covid” para tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. A receita inclui medicamentos como cloroquina (e seu composto, a hidroxicloroquina), ivermectina e azitromicina, e tem sido aplicada em casos suspeitos ou confirmados de covid-19. Sem eficácia comprovada, os remédios podem causar efeitos colaterais graves aos pacientes.

O debate sobre a eficácia do coquetel de medicamentos foi realizado pela Ciência USP. Frederico Fernandes, doutor em pneumologia e médico assistente no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, explicou que a criação sobre o “kit covid” é mais político do que técnico.

O especialista é defensor da autonomia dos profissionais da saúde, mas explica que as entidades médicas precisam apresentar aos seus integrantes notas técnicas sobre a não eficácia daqueles medicamentos contra a covid-19.

“A Associação Médica Brasileira soltou um comunicado absolutamente político acusando os médicos de ‘torcerem pelo vírus’. Eles disseram defender a autonomia do médico, mas não é verdade. Quando estou informado sobre risco-benefício e sei que o risco é maior, o que eu faço é imprudência. Então, erro médico não é autonomia”, afirmou

Na última segunda-feira (20), a AMB defendeu, por meio de uma nota oficial, a autonomia do médico em relação à prescrição da hidroxicloroquina como forma de combate à covid-19. A associação ainda pediu o fim do que chamou de “politização sobre o medicamento”, que não tem eficácia comprovada para o combate do novo coronavírus.

Danos aos pacientes

Frederico explica que o kit é composto por medicamentos indicados para outras doenças, o que significa que pode não ser seguro para o tratamento da covid-19. Ele relata diversos casos de pacientes com quadros graves de arritmia cardíaca após tomarem a hidroxicloroquina.

“O paciente com covid mais idoso pode ter problema cardiovascular e, com uma infecção viral aguda, tudo isso pode levar à arritmia. A gente desconhece a segurança no contexto da covid. Esses kits têm estimulado também o uso precoce de corticoides, o que pode levar à replicação viral”, explicou.

Izabella Pena, pesquisadora no Whitehead Institute, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Boston-EUA, criticou especialmente a presença da ivermectina no “kit covid”. Segundo ela, o uso do medicamento é baseado num estudo australiano que não passou do teste pré-clínico.

“É uma evidencia in vitro, ou seja, fora dos seres vivos. Além disso, foi feita com uma dosagem impossível de circular no sangue do ser humano. Já tem estudos mostrando efeitos colaterais dessa dosagem da ivermectina, como a morte de células. A cloroquina tem mais de 200 testes e a maioria são fúteis, com ensaios científicos sem controles e inúteis. Portanto, você vê vários compostos sendo testados com baixa capacidade de funcionar”, aponta.

Negacionismo?

O kit tem sido distribuído por diversos hospitais privados e planos de saúde do país. No começo de julho, a Prevent Senior, por exemplo, enviou aos pacientes com suspeita de coronavírus um “kit covid” com hidroxicloroquina e azitromicina, mesmo sem que o paciente tivesse testado positivo para a infecção.

O pneumologista do Hospital das Clínicas acrescentou que houve casos de pessoas que, apesar de terem tomado os remédios do “kit”, tiveram o quadro de covid-19 agravado. Alguns faleceram. A única medida com percentual de eficácia aceitável, segundo ele, é o acesso à unidade de terapia intensiva (UTI) feita de forma adequada.

“Quando insistimos no isolamento e máscara, é para evitar o excesso de casos e superlotar a UTI, que é o único recurso que salva vidas. Há o uso político desse kit para (o governo) não (investir em) ampliar o número de leitos ou desvalorizar o distanciamento social. Apontar para uma cura fácil tem o objetivo de intervir menos politicamente, o que vai levar mais pessoas à morte”, afirmou Frederico.

Já Luis Claudio Correia, diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (Bahiana), apontou que a prescrição desses medicamentos sem eficácia comprovada é apenas um reflexo da sociedade.

“A decisão baseada em crença faz parte da sociedade. O pensamento baseado no ceticismo, que é um pilar da ciência, não é habitual. Não vai existir medicina baseada em evidência enquanto não houver a sociedade baseada nisso”, disse.