
Por Reynaldo Aragon, no Código Aberto
Enquanto as atenções do mundo se voltam para a retórica explosiva de Donald Trump, J.D. Vance, seu vice-presidente, lidera nos bastidores uma ofensiva silenciosa, mas devastadora. Aliando-se a bilionários do Vale do Silício e arquitetos do Complexo Civil-Militar da Guerra Híbrida, Vance articula um projeto de recolonização global onde a dominação não se dá mais por tanques ou golpes, mas por linhas de código, algoritmos e plataformas de controle cognitivo.
O arquiteto da recolonização digital
Vance representa a síntese dessa mutação do império. Sua narrativa oficial — a do “caipira resiliente” que superou a pobreza, eternizada em seu livro Hillbilly Elegy — é uma peça cuidadosamente construída de engenharia simbólica. Por trás do enredo do self-made man, Vance foi moldado no coração do Vale do Silício, sob a tutela de Peter Thiel, o maior financiador e ideólogo do tecnolibertarianismo, a doutrina que visa desmontar o Estado-nação e substituí-lo por uma tecnocracia privatizada, operada pelas corporações e suas infraestruturas digitais.
Essa trajetória não o levou apenas a mudar de opinião sobre Donald Trump — a quem chamava de “repreensível” em 2016 — mas o transformou no executor mais eficiente daquilo que podemos chamar de MAGA 2.0: um projeto que abandona a teatralidade do populismo tradicional para adotar uma estratégia de recolonização silenciosa, via tecnologia e guerra híbrida. Vance compreendeu que não era mais necessário ocupar fisicamente os territórios para dominar nações. Bastava controlar as plataformas, os fluxos de dados e a engenharia dos algoritmos que moldam a percepção da realidade.

As redes de poder: o ecossistema vancista de dominação
O poder de J.D. Vance não nasce de sua posição institucional como vice-presidente, mas da teia invisível de redes que ele teceu com precisão ao longo da última década. Essas conexões não são meramente políticas ou econômicas; são estruturas desenhadas para capturar, modular e reconfigurar a arquitetura da informação e da subjetividade social. A base desse ecossistema de dominação é tripla: Peter Thiel, a Heritage Foundation e a Rockbridge Network.
Thiel não é apenas seu mentor financeiro, mas o engenheiro ideológico por trás da estratégia que propõe substituir o Estado por uma tecnocracia privada, gerida por algoritmos e mercados. A aliança entre Vance e Thiel vai além do capital: é uma simbiose estratégica onde o capital de risco se torna ferramenta de engenharia social. A Narya Capital, cofundada por Vance, funciona como um laboratório de experimentação de startups e projetos destinados a corroer a soberania estatal por dentro, substituindo estruturas públicas por plataformas privadas de controle.
O segundo vértice dessa engrenagem é a Heritage Foundation, think tank ultraconservador que abandonou as vestes da velha direita liberal para se tornar o centro operacional do Project 2025, plano de reengenharia do Estado americano. A estratégia é simples e letal: demolir a burocracia pública, eliminar os contrapesos institucionais e instaurar um modelo de governança onde o Executivo, sob controle MAGA, opera com poderes quase absolutos, livre de supervisões do Judiciário ou do Congresso. Vance é o executor designado dessa agenda, garantindo que a retórica revolucionária seja traduzida em reformas administrativas concretas.
A Rockbridge Network, por sua vez, é a rede silenciosa de financiamento e influência que conecta bilionários como Thiel, os irmãos Winklevoss e Rebekah Mercer a uma nova geração de políticos, ativistas e plataformas de guerra informacional. É pela Rockbridge que recursos fluem para financiar campanhas, think tanks paralelos, operações de desinformação e a construção de uma infraestrutura política subterrânea, capaz de sustentar a ofensiva do trumpismo mesmo fora do aparato estatal formal.
Ao redor desse núcleo, orbitam figuras como Elon Musk, Marc Andreessen e outros magnatas da tecnocracia, que, embora em constante tensão com a ala ideológica bannonista, convergem com Vance no objetivo de transformar o Estado em uma extensão dos interesses do capital de tecnologia. Vance atua como elo tático entre essas forças, equilibrando o caos ideológico que Bannon deseja instaurar com a necessidade de estabilidade operacional exigida pelos tecnoplutocratas.
Essa rede de poder não age apenas nos Estados Unidos. Sua projeção é global, e a América Latina — em especial o Brasil — ocupa um lugar central nesse projeto de recolonização. A ofensiva vancista não depende de tropas ou golpes militares, mas de uma arquitetura invisível de captura: tarifas econômicas seletivas, bloqueios financeiros, guerra informacional massiva e, principalmente, a cooptação das elites econômicas locais, seduzidas pela promessa de acesso privilegiado aos fluxos do capital global em troca de submissão política.
No caso brasileiro, a ofensiva se dá de maneira estratégica. A tentativa do STF, liderada por Alexandre de Moraes, de regular as plataformas digitais e impor limites à atuação predatória das Big Techs é vista por Vance e seus aliados como uma afronta inaceitável. Sua resposta, articulada por meio de think tanks, campanhas de desinformação e pressão econômica, visa não apenas desestabilizar as tentativas de soberania informacional do Brasil, mas também transformar o país em exemplo do que acontece com nações que ousam desafiar a nova ordem algorítmica.
O ecossistema vancista é, portanto, uma máquina de guerra híbrida que opera em múltiplos níveis: do financiamento de campanhas políticas à engenharia de plataformas digitais, da construção de narrativas ideológicas à manipulação dos fluxos financeiros globais. É nesse terreno invisível que Vance exerce seu verdadeiro poder, projetando sobre o Sul Global uma nova forma de colonialismo, onde a ocupação territorial é substituída pela ocupação cognitiva e tecnológica.

Enquanto a narrativa pública tenta reduzir o trumpismo a uma massa homogênea de extremismo populista, o verdadeiro conflito decisivo acontece nas sombras: uma guerra estratégica entre dois blocos que disputam a arquitetura futura do império norte-americano. De um lado, Steve Bannon, o ideólogo do caos absoluto, defensor de uma destruição total do Estado como única forma de refundar a ordem política. Do outro, Peter Thiel e os tecnoplutocratas, engenheiros de uma estratégia mais sofisticada, onde a captura do Estado é operada via algoritmos, plataformas digitais e a imposição silenciosa da vontade do capital.
Essa guerra é, na prática, uma disputa entre dois modelos de recolonização: Bannon quer incendiar as instituições, destruir o establishment tradicional, criar um vácuo de poder onde um novo nacionalismo antiliberal poderia emergir de forma orgânica e incontrolável. Thiel, em contrapartida, aposta em uma abordagem cirúrgica: desmontar as engrenagens do Estado-nação por dentro, substituindo progressivamente cada elo da cadeia de poder por estruturas privatizadas, eficientes e subordinadas aos interesses das corporações tecnológicas. É a transformação do Estado em uma extensão operacional das big techs e do capital de risco.
É nesse campo minado que J.D. Vance emerge como peça-chave. Ele não é apenas um aliado de Thiel ou um simpatizante de Bannon — Vance é o pivot estratégico que conecta essas duas forças em conflito, mediando interesses e construindo pontes táticas. Sua função é simples e ao mesmo tempo extremamente complexa: absorver a energia destrutiva do discurso bannonista e convertê-la em reformas estruturais que sirvam ao projeto tecnocrático. Vance compreendeu que o caos ideológico, sozinho, não é capaz de sustentar um império duradouro, mas também sabe que o projeto de captura silenciosa de Thiel precisa do fervor popular mobilizado pelo populismo de Bannon.
Essa operação exige uma engenharia política de altíssimo nível. Vance atua nos bastidores costurando acordos, equilibrando a agressividade dos ideólogos com a necessidade de estabilidade operacional dos investidores. Nos corredores de Washington, ele é visto como o “homem do meio”, aquele que traduz a retórica incendiária das bases em ações práticas de desmonte burocrático, sem perder de vista os interesses dos bilionários que financiam sua máquina.
O Project 2025 é a expressão máxima dessa engenharia. Enquanto Bannon prega a destruição total do “deep state”, Vance trabalha para transformar essa destruição em um projeto de captura racional, onde cada secretaria, cada agência, cada espaço do Estado seja desmontado metodicamente e substituído por estruturas privatizadas, controladas por aliados estratégicos. É o caos organizado. A revolução conservadora do MAGA, sob a coordenação de Vance, não se dá mais nas ruas, mas nos fluxos invisíveis das redes, nos códigos de plataformas e na burocracia reconfigurada como extensão do capital.
Essa tensão interna — Bannonistas clamando por guerra cultural total e os tecnolibertários operando a captura silenciosa — é o que torna Vance uma figura tão perigosa. Ele não é refém de nenhuma das duas correntes. Ele as utiliza. Vance entende que o poder não se constrói na destruição pura, nem na tecnocracia fria. Seu projeto é a fusão de ambas: uma máquina de dominação que combina o fervor de massas com a engenharia digital do capital.
Para o Sul Global, especialmente para o Brasil, esse equilíbrio tático é devastador. Enquanto os setores progressistas tentam reagir à ofensiva ideológica explícita (a guerra cultural do bolsonarismo, por exemplo), Vance e seus aliados trabalham nos bastidores, desmontando as infraestruturas que sustentam a soberania nacional, comprando elites locais, bloqueando canais de financiamento e impondo uma colonização algorítmica que sequer é percebida a tempo.
No jogo de poder do século XXI, o inimigo mais perigoso não é o que grita slogans nas redes sociais. É aquele que, como Vance, projeta o código que define quem será ouvido e quem será silenciado.
A arquitetura da guerra híbrida 2.0: Vance como executor do código imperial
Se no século XX a arquitetura do poder imperial era construída com porta-aviões e ocupações militares, o século XXI é moldado em linhas de código, algoritmos e plataformas de controle cognitivo. J.D. Vance compreende isso como poucos. Ele é o executor de uma nova doutrina imperial, onde a guerra não se trava mais no campo de batalha físico, mas nas infraestruturas invisíveis que modulam comportamento, opinião pública e soberania informacional. A Guerra Híbrida 2.0, sob a coordenação de Vance, é uma guerra de engenharia — e o campo de batalha são os sistemas que definem como as sociedades percebem o mundo.
O Project 2025 não é apenas um plano de desmonte burocrático. É o protocolo operacional de captura total do Estado. Sob o pretexto de “desinfetar o deep state”, o projeto visa substituir cada elo da administração pública por estruturas privatizadas, subordinadas a interesses corporativos. As agências de regulação, os órgãos de fiscalização, os departamentos de ciência, tecnologia e educação — todos eles são alvos de uma operação cirúrgica de neutralização, onde a eficiência não é medida pela qualidade dos serviços públicos, mas pela docilidade ao capital.
A lógica é brutalmente simples: demolir o Estado e, nos escombros, construir uma infraestrutura de governança operada por plataformas digitais e redes privadas de controle. O cidadão deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser um objeto de dados, capturado e modulado por sistemas que respondem não à soberania popular, mas aos algoritmos de rentabilidade dos grandes fundos de investimento.
Vance, ao contrário de figuras como Bannon, não está interessado na destruição total do sistema. Ele quer transformá-lo. O que o diferencia de tecnocratas clássicos é que ele compreende a guerra cultural como uma ferramenta de distração estratégica. Enquanto a opinião pública se debate em polarizações superficiais, ele trabalha para garantir que as engrenagens do poder efetivo — as infraestruturas digitais, as redes de dados, os mecanismos de controle informacional — sejam apropriadas e reconfiguradas conforme os interesses do capital.
No plano internacional, essa engenharia se manifesta na exportação silenciosa de um modelo de recolonização algorítmica, onde países como o Brasil são alvos prioritários. A guerra não se faz mais com frotas e marines, mas com tarifas econômicas seletivas, bloqueios financeiros articulados com Wall Street, campanhas de desinformação operadas por plataformas alternativas e, sobretudo, a captura das elites locais por meio de parcerias privadas que oferecem “integração ao mercado global” em troca de submissão.
A terceira é a mais silenciosa e perigosa: a cooptação das elites locais. O projeto vancista não precisa de intervenções militares para recolonizar o Brasil. Ele precisa seduzir o agronegócio, os conglomerados de mídia, o sistema financeiro e setores da indústria com promessas de acesso preferencial aos fluxos de capital global — desde que aceitem abdicar da autonomia política em troca de rentabilidade. Essa cooptação é o núcleo da estratégia: transformar parte das elites brasileiras em agentes internos do projeto de recolonização digital, criando um ambiente onde a submissão é vendida como modernização.
No centro dessa guerra está a disputa pela regulação das plataformas digitais. O embate entre Alexandre de Moraes e as Big Techs não é um problema jurídico isolado — é um campo de batalha geopolítico. Para Vance e seus aliados, a capacidade de um país como o Brasil impor limites ao poder das plataformas representa uma ameaça inaceitável à arquitetura de dominação global. Derrubar essa tentativa de regulação é, para eles, um imperativo estratégico.
Vance não precisa declarar guerra ao Brasil. Ele já está em guerra. E essa guerra se dá na manipulação dos fluxos de informação, na sabotagem econômica, na captura dos espaços públicos digitais e na coaptação das elites locais. O projeto é claro: transformar o Brasil, novamente, em uma colônia — só que agora, uma colônia algorítmica, onde a ocupação territorial é irrelevante diante do controle absoluto das infraestruturas que definem o que é realidade.
Quem é Mais Perigoso para o Brasil: Trump ou Vance?
A maioria das análises convencionais tende a enxergar Donald Trump como a maior ameaça ao Brasil e ao Sul Global. E há motivos óbvios: Trump é imprevisível, agressivo e tem um histórico de políticas protecionistas e ataques explícitos à soberania de países que ousam contrariar seus interesses. No entanto, reduzir a equação a essa visão seria um erro estratégico. Trump é o catalisador do caos. Ele é o espetáculo, a bomba de fumaça, a força que desestabiliza pela brutalidade. J.D. Vance, por outro lado, é o arquiteto do sistema. E é por isso que ele é mais perigoso.
A última linha de defesa: O Brasil como trincheira global contra a dominação algorítmica

A última linha de defesa contra o projeto de recolonização digital liderado por J.D. Vance não será construída nos fóruns internacionais, muito menos nos tratados diplomáticos que há décadas falham em conter a expansão do imperialismo informacional. Essa linha de defesa será erguida — ou sucumbirá — dentro do Brasil. Porque é aqui que as forças da soberania informacional, da regulação democrática da tecnologia e da autonomia cognitiva estão sendo testadas sob fogo cruzado. O Brasil não é apenas um alvo — é o laboratório e, ao mesmo tempo, a última trincheira do Sul Global.
Diferente de outras nações que já se renderam ao poder das plataformas ou que sequer possuem estrutura para resistir, o Brasil vive um momento crítico onde a disputa ainda está aberta. O governo Lula, através de iniciativas como a tentativa de regulação das Big Techs, o fortalecimento do STF como guardião da democracia e a articulação de alianças com os BRICS, representa uma resistência estratégica à colonização algorítmica. Mas essa resistência está sob cerco.
J.D. Vance e sua rede de influência global não buscam uma confrontação direta. O projeto é sufocar o Brasil por dentro. A ofensiva não virá apenas em forma de tarifas e pressões econômicas; ela se manifestará no campo invisível das percepções, das narrativas fabricadas, das plataformas que decidem o que é visto e o que é silenciado. A guerra será travada na modelagem dos fluxos informacionais, onde a realidade será uma construção dos algoritmos alinhados ao império, e a autonomia nacional será sabotada sem um único tiro.
Para resistir, o Brasil precisará abandonar qualquer ilusão de que a luta se dá apenas em esferas jurídicas ou regulatórias tradicionais. É necessário construir uma estratégia de contra-engenharia, onde a soberania informacional se traduza em infraestrutura própria de comunicação, desenvolvimento de tecnologias descentralizadas e plataformas nacionais de modulação de fluxos de dados. Essa batalha exige um nível de sofisticação que vai muito além da política partidária: trata-se de articular redes de conhecimento, ciência, tecnologia e mobilização social com uma visão geopolítica clara de que a guerra já começou.
Além da infraestrutura técnica, será vital construir um projeto massivo de letramento midiático, capaz de armar a sociedade contra as operações de desinformação e manipulação cognitiva que já estão em curso. A batalha pela soberania não será vencida apenas nos tribunais ou nas esferas governamentais — será vencida na capacidade de criar uma consciência coletiva crítica, resistente aos ataques psicoinformacionais.
Mas essa luta não pode ser solitária. O Brasil precisará liderar a construção de uma coalizão internacional de nações, movimentos e organizações que compreendam a natureza dessa nova guerra. A América Latina, os BRICS, movimentos sociais globais — todos terão que convergir para formar uma rede de resistência contra a recolonização digital. O Brasil tem a escala, a influência e a complexidade política necessária para ser a vanguarda dessa trincheira.
O que está em jogo não é apenas a autonomia do Estado brasileiro, mas a possibilidade de existência de qualquer projeto de soberania no Sul Global. Se o Brasil sucumbir, as demais nações seguirão. Se o Brasil resistir, estará inaugurando um novo capítulo na luta contra o imperialismo — um capítulo onde a guerra se trava não em campos de batalha tradicionais, mas nos códigos, nas redes, nos fluxos invisíveis de informação que moldam o presente e o futuro das sociedades.
A guerra silenciosa já está em curso. A pergunta que resta é: o Brasil terá a capacidade de transformar-se na trincheira global da resistência contra a dominação algorítmica? Ou seremos, mais uma vez, relegados ao papel de colônia — só que desta vez, não de território, mas de consciência?