Aglomerar, desfilar e xingar é o que resta a Bolsonaro. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 24 de maio de 2021 às 19:30

Publicado originalmente no perfil do autor

Por Gilberto Maringoni

Bolsonaro se aglomera com motoqueiros no Rio – Foto: Reprodução

Jair Bolsonaro elegeu-se em 2018 com uma tática clara: esconderia os 28 anos em que passou na Câmara como parlamentar do baixo clero e o fato de seus filhos serem também parasitas institucionais. A meta era encarnar um personagem do antissistema e da antipolítica, com fortes doses de irracionalidade. Votar em Bolsonaro seria um gesto de protesto e rebeldia contra “tudo isso que está aí”.

Bolsonaro moldou seu eleitorado-raiz, seu núcleo duro, na ausência da lógica formal. Deu-lhe sangue. Encontrou apoio em gente como o personagem de O Cobrador, conto de Rubem Fonseca:

“Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita”.

Tudo irrita quem tem cobranças reais por comida, casa, futuro e nunca é atendido. Tudo irrita quem tem cobranças reais e não vê contexto algum pela frente e encadeamento de causa e efeito.

“Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol. Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio”.

Tão me devendo, sei lá quem, mas tão. O personagem de Fonseca rouba uma Magnum com silenciador para fazer suas cobranças. O bolsominion profundo teve o voto e o ódio para cumprir roteiro semelhante.

O mito é nóis! Xinga tudo isso que está aí. É contra os que mandam a gente colocar máscara, contra o que aquela gostosinha do Jornal Nacional fala quando diz para a gente ficar em casa, contra a vachina do filho da puta do Dória, enfim, contra quem manda.

Os que urram “Eu autorizo!” têm raiva, têm ódio da roubalheira do PT, que provocou tudo isso, junto com o comunista do FHC, que compravam o centrão… Mas peralá, tão falando que o mito também compra o centrão? Nada, ele está na rua, xingou o Lula de canalha, o gordo do Maranhão de tirano e falou que chinês tem pau pequeno! Saiu de moto e foi no alto do caminhão falando que vai chamar o Exército. Matou a pau!

Acho que ele quer o que eu quero. “Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha”.

Bolsonaro fala para o Cobrador do Rubem Fonseca. Fala para os 12%, 15% ou 20% dos brasileiros que são os cobradores detectados pelas pesquisas de opinião.

“Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia”.

Ao falar para os cobradores, Bolsonaro consolida seu núcleo duro, os chama para a guerra, qualquer que seja ela.

Mas não é sinal de força. É de isolamento, de desespero.

Até porque as mesmas pesquisas começam a indicar que parte considerável dos que pedem vingança começa a entender que quem lhes tirou “colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim” parece ter sido o próprio mito.