Agronegócio financia lobby para patrulhar livros didáticos

Atualizado em 1 de novembro de 2024 às 12:16
Christian Lohbauer (à direita) e Letícia Jacintho se reuniram com o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (ao centro) no início deste ano para falar do Plano Nacional da Educação. (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Por Hélen Freitas, no Repórter Brasil

“O que as crianças e os adolescentes estão aprendendo que vai ser bom para o mundo do trabalho?”, perguntou Christian Lohbauer, vice-presidente da associação De Olho No Material Escolar, a uma plateia de políticos e empresários reunidos na capital paulista, no início de outubro. Ele discursava durante evento do Lide, grupo criado pelo ex-governador de São Paulo, João Dória.

“Ela não pode aprender, todos os dias, em todos os materiais, há 30 anos, que tem trabalho escravo na cana-de-açúcar. Ela não pode aprender que o alimento brasileiro está envenenado com agrotóxicos. Ela não pode aprender que a pecuária é responsável pela destruição da Amazônia, porque não é verdade”, o próprio Lohbauer respondeu.

Cientista político e um dos fundadores do Partido Novo, ele lidera uma organização que se apresenta como um grupo de pais e mães apartidários preocupados com o ensino dos filhos. Na prática, porém, trata-se de um movimento financiado por empresas do agronegócio com um objetivo: alterar materiais didáticos para retratar o setor de forma mais positiva.

Com apenas três anos, a De Olho No Material Escolar, conhecida como Donme, cresceu e vem ganhando espaço em instituições públicas. Já fechou parceria com a Universidade de São Paulo (USP), tem portas abertas nas secretarias de Educação e de Agricultura do estado e mantém diálogos com a cúpula do Congresso, em Brasília, na tentativa de influenciar o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que vai estabelecer as diretrizes da educação na próxima década.

Por trás desta atuação, porém, está o financiamento de dezenas de empresários e corporações do agronegócio. A organização declara 70 empresas entre os membros, mas não diz quem são. Um estudo ainda inédito, das pesquisadoras Andressa Pellanda e Marcele Frossard da Faculdade de Educação da USP e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mostra que na lista estão grandes associações, como a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), que representa companhias como a JBS, a Cargill, o Itaú BBA e a Cosan.

A associação também é financiada pela Croplife Brasil, representante das maiores fabricantes multinacionais de agrotóxicos e que era presidida por Christian Lohbauer até 2023, quando ele deixou o cargo para assumir como vice-presidente da Donme.

“Somos uma entidade que busca a atualização do material escolar com base em conteúdo científico, equilibrado e que gere perspectivas positivas para os estudantes”, afirma a Donme em seu site.

Em conjunto com a USP, por exemplo, a organização criou a “Agroteca”, uma biblioteca virtual com publicações sobre o agronegócio. Nela, é possível encontrar conteúdos que negam que o Brasil seja o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, tema frequente nas falas da Donme.

No entanto, segundo dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o Brasil lidera com folga o ranking de consumo de pesticidas, quando considerados os dez países com as maiores áreas de lavoura no mundo. A média aqui é de mais de 12 kg aplicados por hectare. Na sequência estão Indonésia (6,5 kg/ha), Argentina (5,9 kg/ha) e Estados Unidos (3 kg/ha).

Negar a responsabilidade da pecuária pelo desmatamento na Amazônia e a existência de trabalho escravo na cana-de-açúcar também fazem parte desta estratégia – ainda que diversos estudos apontem a criação de gado como o principal vetor da destruição na Amazônia, e mesmo que a cana seja um dos setores que mais empregam mão-de-obra escrava, com 1.105 trabalhadores resgatados nos últimos quatro anos.

Especialistas em educação pública ouvidos pela Repórter Brasil classificam a organização como uma versão atualizada do “Escola Sem Partido”, que há uma década passou a fiscalizar o material didático e promover perseguições a professores para impedir uma suposta “doutrinação ideológica” nas escolas.

Para o professor da pós-graduação em Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Rodrigo Lamosa, que pesquisa políticas públicas de educação, o posicionamento da organização é, muitas vezes, “absolutamente ideológico e nada científico”.

“Os livros didáticos são produzidos por autores diversos, são avaliados no interior das editoras e depois no Programa Nacional do Livro Didático, que é um dos maiores programas de distribuição de livros públicos e gratuitos do mundo”, afirma Lamosa. “Então, por mais que a gente possa ter divergências e críticas a alguns livros, isso é parte do processo que constitui a diversidade do campo educacional”, complementa

Um dos objetivos do movimento é ir contra essa diversidade para impor uma visão única, opina o professor da Faculdade de Educação da USP Daniel Cara. “O agronegócio considera que a educação é uma esfera importante para disputa da hegemonia das ideias na sociedade, para disputa da formação de opinião pública”, afirma ele, que é membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE).

Lobby da associação mira plano nacional de educação

Inicialmente batizada de “Mães do Agro”, a Donme foi fundada em 2021 pela pecuarista Letícia Jacintho, atual presidente da associação.

Ela faz parte de uma família influente no agronegócio, com empresas e fazendas em São Paulo e Goiás, nos ramos de pecuária, cana-de-açúcar e soja. Letícia é considerada uma das mulheres mais poderosas do agro pela revista Forbes, juntamente com a sua sogra, Helen Jacintho. Também fundadora da Donme, Helen é membro do Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Em três anos, a organização conquistou associados em 17 estados e 129 cidades. Entre suas ações, a entidade realiza palestras, treinamentos e análise de materiais escolares. Organiza reuniões com editoras de livros didáticos, além de excursões a feiras do agronegócio para alunos, professores e profissionais das editoras. Atua também no lobby em Brasília.

Apenas neste ano, a organização já se reuniu pelo menos duas vezes com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para debater o Plano Nacional de Educação (PNE). O documento deve ser votado em 2025, com validade para os próximos dez anos.

O documento de referência do plano, divulgado em dezembro, foi alvo de críticas da De Olho No Material. A associação diz que a proposta é pouco plural, carece de “base técnico-científica na abordagem do conteúdo” e apresenta “postura refratária à iniciativa privada”.

As críticas foram apresentadas em uma nota assinada conjuntamente por outras associações do agro, como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB).

Desde então, a Donme realizou diversas investidas em Brasília. Além dos encontros com Pacheco e Lira, reuniu-se com o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), presidente da Comissão de Educação da Câmara. Em março, o deputado apresentou os resultados de um estudo da Donme, que avaliou as menções ao agro no material escolar, durante uma reunião da Frente Parlamentar Agropecuária.

O deputado corroborou a visão da associação de que os livros didáticos supostamente trazem uma visão distorcida do agro, e prometeu pautar a Comissão de Educação. “Afinal de contas, o agro é que sustenta, e é locomotiva deste país”, justificou.

Já em abril, quando o Senado realizou uma sessão temática para debater o PNE, a Donme indicou vários nomes para discursar. A sessão foi solicitada pela senadora Damares Alvares (Republicanos-DF) a pedido da associação, segundo apurou a Repórter Brasil.

O PNE, porém, só deve avançar quando for analisado o requerimento do deputado federal Rafael Brito (MDB-AL) e de outros 13 parlamentares, para que seja criada uma comissão mista de análise do plano, composta por deputados e senadores. Desde julho o pedido está parado na Câmara.

Em encontros com os presidentes da Câmara Arthur Lira e do Senado Rodrigo Pacheco, a De Olho no Material Escolar apresenta suas propostas para o Plano Nacional da Educação (Fotos: Reprodução Redes Sociais)

Para Pellanda, que também é coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, estes grupos podem atuar com a bancada ruralista em torno do novo PNE, e podem impedir avanços em temas como as mudanças climáticas.

Procurada, a De Olho No Material Escolar disse em nota que trabalha para a melhoria da qualidade do conteúdo didático sobre o agronegócio oferecido às escolas, independentemente do tema. “Nosso principal ponto é que a ciência esteja presente nos livros didáticos com dados e informações técnicas e reais, por isso a parceria com institutos de pesquisas e instituições de ensino especializadas no setor”.

Movimento influencia escolas particulares

Embora já tenha alcançado a cúpula do Congresso, o movimento teve início com uma simples carta enviada a uma escola particular de Barretos, interior de São Paulo.

Letícia Jacintho e outros pais escreveram para um colégio na cidade que utilizava o material didático do sistema Anglo, para criticar como temas como desmatamento e povos indígenas eram abordados. Segundo a carta, “as crianças são incentivadas a manifestar piedade aos índios e repudiar a cultura da cana-de-açúcar [por retirar as terras dos indígenas]”.

Página enviada pelo grupo de pais questionando a abordagem do livro didático. (Foto: Reprodução)
Página enviada pelo grupo de pais questionando a abordagem do livro didático. (Foto: Reprodução)

O protesto viralizou quando o agrônomo e político Xico Graziano, ex-secretário de Meio Ambiente no governo de José Serra e voz influente no agro, divulgou a história. “Tem coisa errada [nos livros], tem coisa doutrinária, esquerda, esquerdismo”, disse Graziano.

Na carta ao Anglo, os pais afirmavam que a realidade do campo é “totalmente” diversa da retratada nos livros. “A cana-de-açúcar é responsável por uma parcela importantíssima de nossos empregos e renda”, escreveram.

Após o episódio, Letícia decidiu realizar um estudo sobre materiais didáticos, mas faltava o financiamento. Foi quando entrou em cena a Croplife Brasil, associação das fabricantes de agrotóxicos, que era então presidida por Christian Lohbauer.

“A gente [Croplife] foi um dos principais financiadores do estudo, junto com todo um pessoal que eu ajudei a angariar das associações do agro. A pecuária, os exportadores de carne, os exportadores de frango e suínos, açúcar e etanol, que são setores muito afetados [pelos livros escolares]”, lembrou Lohbauer em uma entrevista recente.

Em janeiro de 2023, Lohbauer deixou a presidência da Croplife para embarcar na Donme. Chamado de “professor”, o executivo passou boa parte da carreira em empresas, como a Bayer, e associações ligadas ao agronegócio, como a Abag. Ainda foi candidato a vice-presidente do Brasil pelo partido Novo em 2018.

Ele também é comentarista da Brasil Paralelo, produtora conhecida pela veiculação de conteúdo audiovisual de extrema-direita, em um programa ao lado do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP).

O estudo financiado pela Croplife – o mesmo apresentado pelo deputado Nikolas Ferreira à FPA – identificou que a maior parte das menções ao agro em 94 livros didáticos tinham tom negativo. Um dos exemplos apresentados é um poema de 1991 de Ferreira Gullar, que trata das condições precárias dos trabalhadores de cana-de-açúcar. Os resultados da pesquisa são utilizados pela associação em palestras, entrevistas e no lobby.

“Homens que não sabem ler e morrem de fome/ aos viente e seta anos/ plantaram e colheram a cana /que viraria açúcar”, diz poema de Ferreira Gullar, apontado pelo movimento como exemplo negativo (Foto: Reprodução/Estudo Donme)
“Homens que não sabem ler e morrem de fome/ aos viente e seta anos/ plantaram e colheram a cana /que viraria açúcar”, diz poema de Ferreira Gullar, apontado pelo movimento como exemplo negativo (Foto: Reprodução/Estudo Donme)

O discurso da Donme sensibilizou ao menos um representante do sistema Anglo, Mario Ghio, ex-presidente e atual conselheiro da Somos Educação, dona das marcas Anglo, Mackenzie, Ática e Saraiva. Ele se lembrou da carta de Letícia durante o evento do Lide neste mês.

“A gente se conheceu num momento duro, a Letícia veio me dar uma ‘paulada na cabeça’. Ela veio me criticar, e eu falei: ‘você tem razão’. Nós temos autores metropolitanos que viveram uma vida urbana e que acham que o mundo agropecuário é o Jeca Tatu do Monteiro Lobato ou é o destruidor da Amazônia, que eles leem em alguns meios de comunicação. A gente precisou reconhecer o problema, andar pra trás, educar todo mundo”, declarou.

Atualmente, a Somos Educação mantém parcerias com a Donme para a elaboração de vídeoaulas e treinamento para autores e editores. A reportagem não conseguiu confirmar se o material do sistema Anglo é alterado sob orientação da Donme.

Questionada, a Somos Educação declarou que “todo o material didático é atualizado anualmente, seguindo as orientações curriculares do Ministério da Educação (Base Nacional Comum Curricular e Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental), com todo o rigor técnico-pedagógico”. “A Somos Educação se pauta pela pluralidade de ideias e busca manter seus materiais em constante atualização”, finalizou.

Parceria com a USP e aproximação do governo de SP

Não foi apenas o Anglo que abriu as portas para a De Olho No Material. Em Piracicaba (SP), a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, decidiu colocar sua produção acadêmica à disposição da associação em um projeto de divulgação científica.

Assim nasceu em 2022 a “Agroteca”, uma biblioteca virtual com conteúdo do agronegócio. No repositório, porém, não há menções a fatos como  a responsabilidade do agronegócio por queimadas ou desmatamento.

Procurada, a Esalq não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.

O governo paulista também abriu as portas para a Donme. “O primeiro estado que passou a adaptar os seus materiais próprios, os escritos, até por orientação do [ex-governador João] Dória, foi o estado de São Paulo junto com o movimento De Olho No Material, justamente porque a gente concorda que não dá para demonizar aquilo que nos sustenta”, declarou no evento do Lide o ex-secretário de educação do estado, Rossieli Soares. Ele já foi secretário de Educação do Amazonas, ministro da Educação do governo Michel Temer e é o atual chefe da pasta no Pará.

A Repórter Brasil questionou a secretaria de educação paulista sobre mudanças no material didático e parcerias envolvendo a Donme, mas não houve retorno. Já a Donme declarou que não tem qualquer acordo com o governo de São Paulo, apesar de a sua presidente já ter dito em entrevista recente que está negociando com a pasta um treinamento para professores, que se chamará “Mestres do Agro”.

A Secretaria de Agricultura do estado também recebeu a Donme este ano, em reunião em fevereiro sobre materiais escolares. “Precisamos promover conteúdos com embasamento científico e vivência real para os jovens brasileiros”, afirmou após o encontro o secretário da agricultura Guilherme Piai, que também vem de uma família de produtores rurais.

Em setembro, a secretaria anunciou a criação do programa Agro Jovem, “que prevê políticas públicas para integrar as novas gerações ao campo”, iniciativa celebrada pela De Olho No Material.

Para Lamosa, a Donme utiliza-se de uma estratégia ideológica de disputa de espaço ao criar campanhas afirmando que os livros didáticos e a escola estão de costas para o agronegócio. “É uma falácia dizer que o agro não está dentro da escola. Todas as pesquisas sobre ações que eles vêm produzindo [dentro e fora da escola] mostram que eles estão lá. A questão é que eles querem o monopólio da escola”, finaliza.

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