“Agulhas num palheiro”: produtores sustentáveis na Amazônia batalham por apoio do mercado. Por Lúcia Müzell

Atualizado em 26 de dezembro de 2019 às 17:41
Pedro Soares promove café agroflorestal Apui, produzido em áreas degradadas da Amazônia. RFI

Publicado originalmente no RFI:

POR LÚCIA MUZELL 

Em meio à avalanche de críticas que o Brasil tem recebido pela alta do desmatamento da Amazônia, produtores tentam ganhar espaço com um manejo responsável das áreas florestais. Por enquanto, são como agulhas num palheiro: na imensidão do território amazônico, a agricultura sustentável é minoritária, misturada a vastas áreas devastadas para viabilizar a pecuária, entre outros cultivos. Mas o setor não desiste e se esforça para crescer.

Nos corredores da Conferência do Clima (COP25), que aconteceu em Madri, o gestor ambiental Pedro Soares andava por todos os lados com pacotes do café agroflorestal Apuí, divulgando a iniciativa. O produto é fabricado em áreas degradadas da floresta, na região de mesmo nome, no sul do Amazonas, com o apoio do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia). Sem querer, uma produtora rural percebeu que o café poderia se beneficiar da sombra da copa das árvores –confirmando a velha ideia de que a floresta em pé vale mais do que deitada.

“Começou com uma família, com a Dona Bernardete, e hoje temos 30 famílias que produzem café agroflorestal. Toda a cadeia é integrada, desde a produção das mudas, num viveiro licenciado, com produção toda orgânica, sem nenhum químico, nem para controle de pragas”, explica Pedro. “A colheita é manual e o café é beneficiado em Apuí mesmo, onde é torrado e moído.”

Ampliar área de produção

O desafio não foi fácil: os custos de produção e logística são elevados e fizeram com que, nos primeiros anos, o projeto só funcionasse com o apoio de empresas ou filantropia. Mas o apelo internacional pela preservação da floresta pode resultar num impulso à ampliação do negócio. Em janeiro, será lançada uma rodada de investimentos por uma plataforma de equity crowdfunding, aberta a pessoas físicas. Dos atuais 40 hectares de produção de café orgânico, o objetivo é ampliar para 250 hectares.

“Estamos recuperando florestas e evitando desmatamento. A partir do momento em que geramos renda numa determinada área, o produtor não tem mais por que desmatar porque já tira todo o sustento daquela área mesmo”, observa o gestor. “A conexão com o mercado internacional é muito bem-vinda. Acho que o brasileiro também deveria ter a consciência do consumidor europeu, de entender melhor o que está comprando.”

O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) se especializou em desenvolver iniciativas sustentáveis na Amazônia, junto a pequenos produtores e indígenas. A entidade faz a ponte entre essas cadeias e mercados interessados em produtos éticos e responsáveis.

Selo Origens Brasil

O selo Origens Brasil permite retraçar toda a linha da fabricação. “Para além da castanha do Brasil, vem surgindo a organização de comunidades extrativistas e de povos indígenas para o guaraná, o pescado de pirarucu, que deve entrar no selo Origens muito em breve, além de cadeias mais desafiadoras, como a da copaíba e da andiroba, que são importantes para a indústria cosmética”, afirma Isabel Garcia Drigo, coordenadora de projetos da iniciativa de Clima e Cadeias do Imaflora.

Mercado de carbono pode se transformar em presente de grego

Pedro e Isabel permanecerão particularmente atentos a um dos focos das discussões na COP 25, a regulamentação de um mercado internacional de carbono. A conferência em Madri terminou sem acordo, tamanhas as divergências entre os países vendedores, a exemplo do Brasil, e os compradores, como a União Europeia.

O Café Apuí contabiliza o CO2 que retira da atmosfera e já realizou uma transação com a empresa Natura. “A gente acredita que os serviços ambientais podem nos ajudar a fechar a conta e escalonar a atividade. Mas esperamos que, acima de tudo, o mercado de carbono ajude a resolver o problema. Não queremos um mercado que ajude somente as empresas, mas sim o clima”, ressalta Pedro.

O temor é que, através dessas transações, países e empresas se desestimulem a reduzir as emissões de gases de estufa, ao poderem compensá-las com a compra de quem tem créditos disponíveis. Ou seja, o que nasceu como uma boa ideia para preservar o planeta poderia se reverter em uma ferramenta ainda pior contra o aquecimento global.