Alberto Fernández e a ditadura de toga, que ele promete enfrentar. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 10 de dezembro de 2019 às 14:35
Alberto Fernández e Cristina Kirchner

Em sua posse como novo presidente da Argentina, Alberto Fernández fez um discurso corajoso, em que atacou o maior problema hoje na América do Sul, especialmente no Brasil: a Justiça política, que atua seletivamente, como se viu hoje, em uma operação contra o filho do ex-presidente Lula.

“Sem uma justiça independente, não há república ou democracia. Há apenas uma corporação de juízes atentos para satisfazer o desejo dos poderosos e punir sem razão aqueles que os enfrentam”, disse.

“Vimos perseguições indevidas e detenções arbitrárias induzidas por aqueles que governam e silenciaram por alguma complacência da mídia”, acrescentou.

Parecia falar do Brasil, mas era sobre a Argentina, que também sofre com o lawfare — o uso do sistema de justiça para perseguir adversários.

Fernández colocou o dedo na ferida ao dizer que serviços de inteligência (seriam apenas da Argentina?) contaminaram o trabalho dos juízes.

“Nunca mais uma Justiça contaminada por serviços de inteligência. Nunca mais uma Justiça contaminada por operadores judiciais, por procedimentos obscuros e linchamentos da mídia”, destacou, para ser aplaudido em seguida.

Por fim, prometeu que se empenhará para que a justiça retome o caminho da independência, sem envolvimento com grupos políticos.

“Vamos enviar ao parlamento um conjunto de leis que consagrem uma reforma abrangente do sistema de justiça federal”.

Fernández não deixou de falar sobre a situação política em outros países da América do Sul, uma referência indireta ao que aconteceu no Brasil, mas não só.

“Os movimentos autoritários cresceram na região, houve golpes e, ao mesmo tempo, crescentes reivindicações dos cidadãos contra o neoliberalismo. A Argentina elevará seus princípios de paz, democracia e plena aplicação dos direitos humanos”.

Sob olhar e aplausos do vice-presidente Hamilton Mourão, Fernández falou sobre o que espera da sua relação com o Brasil.

“No Brasil, temos que construir uma agenda ambiciosa e criativa, tecnológica, produtiva e estratégica, apoiada na irmandade histórica de nossos povos e que vá além de alguma diferença pessoal daqueles que governam a conjuntura”, disse.

O tom do discurso de posse de Fernández lembrou o de Raul Alfonsin em 1983, um marco na retomada da democracia no continente.

Na época, os militares eram os adversários da democracia. Agora, são setores do Judiciário, que seguem a cartilha de Sergio Moro.

Se Fernández promete enviar para o Congresso projeto de lei para que haja uma reforma do Judiciário, Alfonsín encaminhou, à época, um projeto de lei para revogar a lei de autoanistia estabelecida pelos militares.

Alfonsín também estabeleceu a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas para investigar os crimes cometidos pelos militares, que resultou na condenação dos chefes do antigo regime.

Como Alfonsín à época, Fernández pode iniciar um novo ciclo no continente. No Brasil, a ditadura militar acabou dois anos depois da posse de Alfonsín. No Chile, o regime sanguinário e corrupto de Augusto Pinochet durou até 1990.

Fernández é peronista, Alfonsín, da União Cívica Radical, mas, como Fernández, era o que se pode definir de centro-esquerda.

O governo de Alfonsín, bem sucedido na reconstrução da democracia na Argentina, falhou no projeto econômico, e terminou o mandato com hiperinflação.

Foi sucedido por Carlos Menem em 1989, que implantou um projeto neoliberal, de alinhamento aos Estados Unidos. Também não deu certo.

O desafio de Fernández será levar adiante seu compromisso com reformas que aperfeiçoem a democracia na Argentina e, ao mesmo tempo, recupere a estabilidade econômica, abalada pelo projeto neoliberal de Maurício Macri.

Fernández representa um sopro de esperança na América do Sul, que, como ele disse, viu a ascensão de movimentos autoritários, com golpes e “crescentes reivindicações dos cidadãos contra o neoliberalismo”.