Antes de Adnet, mostrei o esgotamento de um “modelo” de reportagem. Por Lenio Streck

Atualizado em 29 de dezembro de 2022 às 11:49
Adnet. Foto: Globo/Reprodução

Por Lenio Luiz Streck

Desde antes de Adnet, mas bem antes mesmo — seguramente há mais de 20 anos — venho “brincando” com o “modelo” de fazer reportagem de TV. Isso é antigo. Já era assim nos anos 80, quando escrevi sobre as “isomorfias”. Calma. Explicarei já, já, o que é isomorfismo.

Já de pronto com isso quero dizer que Adnet faz uma crítica (humorística) com um objetivo; já eu faço a crítica, digamos assim, pelo lado acadêmico. Diferentes jogos de linguagem.

Não sei se ensinam isso nas faculdades de comunicação e jornalismo, mas que é bizarro, é. Dizia eu em um texto de 1991: “hoje em dia, o repórter, para falar de uma enchente, ‘tem de estar’ com a água pelo pescoço”.

Lembro-me que, nas constantes altas da gasolina, o repórter aparecia vestido de frentista. Ou de taxista, para falar que o preço “andava cada vez mais rápido”. Sem esquecer que o primeiro bebê do ano aparece — até hoje — nos braços do ou da repórter vestida(o) de enfermeiro(a). Há um programa de TV em que tratei disso há mais de 20 anos.

Sou, pois, se não pioneiro, um dos primeiros nesse tipo de análise e de crítica. E sou muito fã do Adnet. Mas eu cheguei antes.

Metaforizando a metáfora metaforizada, digo: a sacada de Adnet é boa (o repórter mostra o apartamento de Adnet e ele abanando da… sacada…). Mas eu cheguei primeiro (o repórter cruza uma linha de chegada… chegando… primeiro…).

O humorista Adnet fez um quadro que bem mostra o fenômeno. Adnet ironiza o que os repórteres fazem: acham que o telespectador é um néscio, uma toupeira que não sabe o que é metáfora. Minha dúvida: será que os repórteres sabem o que é uma metáfora ou uma alegoria?

É muito boa a sátira do Adnet. Sim, o “modelo” de reportagem se propõe a fazer uma coisa que ninguém da linguística julgaria proveitoso: explicar uma metáfora ou uma alegoria. Explicar a explicação?

Essa da água pelo pescoço para explicar a enchente é velha. Mas se repete. Variações do mesmo tema. De certo modo, o Pasquim brincava com essa coisa do “pé da letra”.

Volto. Matéria sobre mensalidades escolares. Você já sabe como será: o repórter fala, com pausas, da frente do colégio. Depois estará na sala de uma família, com um carnê na mão. E “explicará” o que quis noticiar. O pão sobe de preço; e lá está o repórter ou no trigal ou na padaria. E entrevistará uma utente que dirá: assim não dá mais… Ou arrancará a fórceps uma lágrima da mãe que perdeu a família na enchente…!

Formou-se, assim, uma escola isomórfica. (Nota: isomorfia é tentar “colar” palavras e coisas — digamos assim que o filósofo Wittgenstein tentou isso no livro Tractatus Logico Philosophicus, tendo, depois, escrito outro livro para dizer que isso não dava certo. Somente pode ser articulável em linguagem com sentido aquilo que pode ser “representado” enquanto estados de coisas. Wittgenstein era brilhante como homem de seu tempo e reservava muito espaço para aquilo que não pode ser dito. Mas mesmo ele mudou de ideia depois. E jamais o Wittgenstein do Tractatus aceitaria essas picaretagens de uma isomorfia televisiva sem epistemologia!).

Aliás, no século XVIII Jonathan Swift já brincava com isso no seu Viagens de Gulliver, quando mostra um “cientista” que inventou a comunicação sem palavras: mostrava só as coisas…! Genial! A literatura sempre corre na frente!

Na verdade, a literatura faz melhor. O cientista de Gulliver substituiu a palavra pela coisa. Pela própria coisa. Em vez de dizer, mostrar. Bingo! Swift era o cara. Tanta coisa seria diferente hoje se as pessoas simplesmente lessem Swift.

Hoje, o repórter fala da coisa por metáfora e “mostra” a metáfora. Como se a palavra água molhasse. Em vez de informar, faz rir. E Adnet mostra bem isso.

Na verdade, esse “modelo” usa uma simbiose ad hoc de metáforas, alegorias, sinédoques, metonímias e outras figuras de linguagem… Porém, usa-se sempre aquilo que busca uma isomorfia por meio da “explicação” da própria figura utilizada. Por exemplo, o Mito da Caverna é uma alegoria usada por Platão. Então, se já houve o uso de uma figura de linguagem, por qual razão usar uma outra figura para explicar a figuração?

“Explica-se” aquilo que serve para explicar. É o caso de uma filósofa que tinha um quadro no Fantástico da Globo: para falar do Mito da Caverna, adivinhem… entrou em uma caverna. E para falar de Heráclito, subiu em um caminhão… Claro, o filósofo do movimento! Captaram? Material bom para Adnet. E para quem estuda linguística.

Se se quer dizer que o jogador é um touro, isso é uma metáfora para que as pessoas entendam mais facilmente. Jesus falava por metáforas. E alegorias. E metonímias. Agora, se se diz que Hulk é um jogador forte como um touro, não precisa um touro no pasto. Aí a vaca foi para o brejo…(putz: tem de mostrar a vaca indo para o capinzal).

Correndo o risco do truísmo ou da platitude (coisa que mais tem no jornalismo), o que quero dizer é que se se quer dizer que a gasolina está com o preço nas nuvens (isso é uma metáfora), não precisa mostrar… uma nuvem.

É disso que se trata. É uma imbecilização do telespectador, teleouvinte ou internauta. Tira-se a “barra” que separa-liga o significante ao significado. E se transforma tudo em uma “psicopatia linguística”. Como se diz na linguagem popular, “colam o relé”.

Minha dúvida é: isso é ensinado nas faculdades? Ou é senso comum adquirido? Bom, no direito alguns cursinhos de preparação para concursos — e faculdades — fazem quase isso. Ensinam por memes e… explicam os memes. E fazem sinopses. E assim evitam sinapses. Há resumos de resumos. É como entrar na caverna para explicar o Mito da Caverna. Rebaixam o estudante ao res do chão (Putz: tem de mostrar um rodapé ou… como se mostra, mesmo, o res do chão?)

Ah, que chatice. O colunista é um chato! É mesmo? O grande busílis é a imbecilização das coisas. Nada mais pode ser sofisticado. Quem ainda lê textos longos? Faça o teste com seus amigos.

Nada pode sequer ser indicado. Deve ser tudo desenhadinho para o idiota do espectador. Ou internauta. Ou nescionauta. E assim vamos formando uma legião de néscios.

É esse o caminho que queremos? Não podemos mais do que isso?

Pois esse é o ponto. Chatice? Pode ser. Mas um mundo com mais chatos certamente teria menos néscios. O excelente deboche de Adnet é um deboche com quem debocha de há muito da inteligência alheia. E eu posso dizer que falo isso já de há muito. É bom ver essa crítica ganhando força.

Pelo fim da idiotização. Uma vacina anti néscio já. Não preciso de um repórter no meio de um campo de futebol para falar em proporção.

Tenho de finalizar a coluna. Para que isso não vire um moto contínuo. Aliás, fosse na TV, o (a) repórter mostraria… bah, essa é difícil. Como se “isomorfiza” a expressão “moto contínuo”?

Deixa pra lá. Está resolvido. Repórter mostra um contínuo andando de moto. É quase a mesma coisa!

Feliz Ano Novo aos meus leitores que leram até aqui. Menos sinopses e mais sinapses. E isso que eu disse não pode ser sinopsiado.

Texto publicado originalmente no Conjur

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