Antiga civilização da Amazônia é ameaçada pelo agronegócio

Atualizado em 26 de setembro de 2024 às 8:43
Terras sem lei do sudoeste da Amazônia: Geoglifos na fazenda Atlântica perto de Rio Branco, no Acre – Foto: Dado Galdieri

Nos confins do sudoeste da Amazônia, Antonia Barbosa luta para proteger antigos sítios arqueológicos ameaçados pelo poderoso agronegócio, um setor que movimenta R$ 2,6 trilhões no Brasil. Os fazendeiros veem a terra como fonte de lucro e consideram os geoglifos, estruturas geométricas no solo, um obstáculo. Nos últimos anos, pelo menos nove desses sítios, que podem medir até 385 metros de largura e quase 5 metros de profundidade, foram destruídos. Isso está apagando os vestígios de uma civilização que floresceu por cerca de mil anos, desde a época de Cristo. À medida que a agricultura avança na Amazônia, os geoglifos estão sendo eliminados tão rápido quanto são descobertos. Com informações da Bloomberg.

Antonia Barbosa, a única arqueóloga do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Acre, manuseia peças de cerâmica encontradas nesses sítios em um depósito no estado – Foto: Dado Galdieri

“No terreno da nossa casa, temos um patrimônio tão importante quanto as pirâmides do Egito”, afirma ela. “Eles duraram mais de 2.000 anos e vamos destruí-los em menos de uma geração.” Barbosa enfrenta uma batalha difícil. Agricultores e pecuaristas são forças políticas e econômicas poderosas no Brasil, contribuindo para 24% do PIB do país. O Acre faz parte dessa fronteira, onde a produção de soja triplicou em dois anos, atingindo 60.600 toneladas e expandindo terras agrícolas para 43.000 acres. As ações do Iphan, incluindo multas, são uma gota no oceano para grandes fazendas industriais.

O rápido desaparecimento dos geoglifos faz parte do desmatamento mais amplo da Amazônia, destinado à agricultura. Isso coloca em risco todo o planeta, que já enfrenta as consequências das mudanças climáticas. A Amazônia armazena cerca de 20% de todo o carbono da vegetação global. A destruição da floresta ameaça transformar essa reserva em uma fonte líquida de emissões, comprometendo os padrões de chuva em toda a América do Sul. Desde 2000, a região perdeu uma área maior do que o estado de São Paulo, pressionando para expandir plantações e pastagens. O desafio para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é equilibrar a economia do agronegócio com a proteção das florestas.

Geoglifos danificados em meio a campos de cultivo vistos de cima na fazenda Crichá – Foto: Dado Galdieri

O custo para proteger os geoglifos é irrisório em comparação ao valor da colheita de soja brasileira, estimada em R$ 341 bilhões no ano passado. Um hectare de soja pode gerar cerca de US$ 2.000 em receita. Portanto, os 1.000 geoglifos, com tamanho médio de dois hectares, representariam apenas US$ 4 milhões anualmente. Esses desenhos simétricos são essenciais para entender a história da região. Eles revelam uma civilização sofisticada que alinhava seu calendário agrícola com os solstícios e cultivava árvores frutíferas e de castanhas, provando que a Amazônia foi um vasto pomar, e não uma natureza intocada. Barbosa evita conclusões precipitadas sobre o tamanho ou estrutura dessa sociedade. Outros pesquisadores comparam seus criadores a uma confederação de cidades-estado, como na Grécia Antiga.

Por mais importantes que sejam, muitos geoglifos já foram destruídos por fazendeiros no Acre. Em locais mais preservados, é comum ver gado pastando nas trincheiras. A tensão entre quem busca lucro com a terra e quem deseja preservá-la é evidente. Barbosa não comenta os riscos pessoais, mas mostra uma foto que recebeu: um homem armado, de chapéu, ao lado de um pote de cerâmica. A mensagem é clara: arqueólogos não são bem-vindos.

Os geoglifos foram descobertos quando a selva foi desmatada para criar pastos no século XX. Inicialmente, acreditava-se que eram trincheiras de uma guerra com a Bolívia. Somente na década de 1970, arqueólogos perceberam que eram antigas obras humanas.

Os estudos científicos sobre os fenômenos naturais começaram a ganhar força nos anos 2000, impulsionados por Alceu Ranzi, pesquisador que inspirou Barbosa. Ranzi organizou sobrevoos para fotografar os geoglifos, revelando sua magnitude e importância. Até 2015, o Iphan identificou mais de 300 sítios no Acre, considerados para status de Patrimônio Mundial pela Unesco. Estima-se que existam outras 24.000 obras semelhantes no sudoeste da Amazônia e na Bolívia. Ranzi acredita que a área abrigava cerca de um milhão de pessoas, número semelhante à população atual.

A parte mais densa dessa antiga civilização está ao longo da BR-317, conhecida como “Rodovia dos Geoglifos”, cortando pelo menos 11 sítios. A Bloomberg visitou a área com Barbosa e usou drones para registrar sete dessas estruturas, visíveis apenas do alto. Barbosa, confortável em sua missão, explora fazendas à procura dos geoglifos, pulando portões e conversando com proprietários. Ela diz que os grandes latifundiários representam a maior ameaça aos geoglifos, devido ao poder econômico e jurídico que possuem.

A pressão econômica é clara. A terra fértil do Acre é perfeita para a soja, cujo cultivo se expandiu após a abertura de portos e infraestrutura de exportação, atraindo gigantes como Cargill e Bunge. Fazendeiros locais, como Jorge Moura, protegem alguns geoglifos em suas propriedades, mas outros, como Assuero Doca Veronez, presidente da federação agrícola do Acre, foram acusados de destruí-los. Veronez foi processado por R$ 200 mil e a restauração dos geoglifos de sua fazenda está estimada em R$ 2 milhões.

O desafio para Barbosa é gigantesco. Com poucos recursos e apoio, ela é a única arqueóloga do Iphan no estado. O Ministério Público, representado por Luidgi Merlo Paiva dos Santos, tenta processar os destruidores, mas a situação é preocupante. Há mais casos de destruição para investigar, e muitos proprietários agem de má-fé ao limpar os terrenos para plantar milho, soja ou café. Apesar disso, há esperança em pequenos agricultores, como Severino Calazans, que preserva um geoglifo em sua propriedade.

O Acre precisa de mais reconhecimento e iniciativas para proteger os geoglifos. O turismo ainda é pouco explorado, e os planos para promover o patrimônio arqueológico estão apenas começando. Segundo Ezequiel de Oliveira Bino, secretário de desenvolvimento econômico em Rio Branco, é necessário promover os geoglifos da mesma forma que outros sítios arqueológicos, como as linhas de Nazca, no Peru. Até então, o avanço da agricultura coloca esse legado histórico em risco iminente. “Estamos correndo o risco de destruí-los antes de conhecê-los”, lamenta Ranzi.

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