Ao contestar Lula, Passe Livre entra numa canoa furada: O legado de 2013 foi a ascensão da extrema direita. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 30 de dezembro de 2019 às 23:06
O fruto daquelas Jornadas

Volto ao tema das Jornadas de Junho depois que o Movimento Passe Livre divulgou nota para contestar o ex-presidente Lula, que em entrevista à Telesur disse acreditar que os Estados Unidos estiveram por trás daquelas manifestações. É uma discussão que está fora do eixo — sem trocadilho com a organização que se destacou na época e foi a base da criação de coletivo de jornalismo importante, o Mídia Ninja.

E está fora do eixo porque a legitimidade dos protestos do Passe Livre e a colocação feita por Lula não são excludentes. É óbvio que a direita (talvez internacional) se apropriou daquelas manifestações. Mas isso não quer dizer que os jovens coordenadores do Movimento Passe Livre estivessem mancomunados com grupos obscurantistas. Fugir desse debate só interessa àqueles que querem o retrocesso.

Mas, primeiramente, registre-se  o que disse Lula. Perguntado sobre o que há em comum entre os protestos da época no Brasil e os de hoje em outros países da América do Sul, afirmou:

“A diferença é que essas manifestações são feitas para conquistar direitos. As manifestações de 2013 foram feitas já fazendo parte do golpe contra o PT”, respondeu Lula. “Elas já foram articuladas para garantir o golpe, porque elas não tinham reivindicações específicas. Não tinha reivindicação específica. As manifestações começaram como parte do golpe incentivadas pela mídia brasileira, incentivadas eu acho que, inclusive, de fora para dentro. Acho que já teve o braço dos Estados Unidos nas manifestações do Brasil.”

O Passe Livre recebeu a declaração como uma ofensa, e não é. Na nota que enviaram para o site Fórum, seus coordenadores se colocaram como se estivessem na planície e Lula no topo do poder:

“Mas, daqui debaixo, acreditamos que quem sabe melhor dos seus sonhos é o próprio povo e que eles não podem ser descartados em nome da ‘governabilidade’. Pois as nossas revoltas não cabem na lógica das urnas.”

Essa declaração poderia fazer algum sentido em 2013, mas hoje soa como falta de senso da realidade.

Não é difícil entender como o movimento se transformou numa armadilha que aprisionou a democracia (e a própria lógica das urnas), sem que seus organizadores estivessem conscientes disso.

Frise-se, no entanto, que concordar com a exigência de que os partidos políticos não pudessem participar das manifestações foi erro de proporções gigantescas.

Um dos marcos da transformação dos protestos foi a orientação dos veículos de comunicação, os mesmos que, um ano depois, estabeleceriam uma aliança com a Lava Jato para derrubar Dilma, e condenar e prender Lula.

O Globo e seus colunistas, incluindo aí o Arnaldo Jabor, detonaram as manifestações em seus primeiros dias. A Folha de S. Paulo fez o mesmo.

Alguns dias depois, saudavam as manifestações como o despertar do gigante. Ora, o Brasil era visto como a bola da vez e Lula, como um dos principais líderes mundiais.

O Brasil sediaria dois eventos que são as principais vitrines dos países: A Copa do Mundo e as Olimpíadas, eventos de país de peso.

Era quase um gigante, os protestos fizeram do país uma nação quase anã, hoje sob administração do baixo clero.

E o Passe Livre não tem nada a ver com isso? Claro que tem, em princípio não dolosamente, mas tem.

Com a nota divulgada agora, o Passe Livre defende o que poderia se chamar de seu legado. Mas que legado é esse?

O que ficou daquela manifestação? Uma foto da época já mostra as pessoas com camisas da seleção protestando contra a corrupção, uma espécie de uniforme que seria usado nos anos seguintes até Dilma cair e Lula ser preso.

Este é um legado evidente daqueles manifestações.

Qual seria outro? O MBL, uma corruptela da sigla MPL.

No que diz respeito à reivindicação específica do Passe Livre, o que aconteceu? Reivindicava-se a revogação do aumento da tarifa. Na época, em São Paulo, a passagem seria fixada em R$ 3,20. Hoje, está em R$ 4,30, e subirá para R$ 4,40.

Legitimamente, o MPL (não MBL) realizará novas manifestações. É legítimo. Mais do que isso, é admirável. Sempre que a tarifa aumenta — antes e depois de 2013 —, o Passe Livre vai para a rua.

Mas será que algum de seus coordenadores já se perguntou por que seus protestos nunca mais tiveram a mesma adesão daquele junho de 2013, véspera do início da Copa das Confederações, uma preliminar da Copa do Mundo? Estávamos também a um ano das eleições, que por pouco não foram vencidas por Aécio Neves.

Na época, a reivindicação em relação à tarifa foi logo atendida. Foi cancelado o aumento de 20 centavos. Mas os protestos continuaram.

Não era pelos 20 centavos, como muitos diziam. Era para derrubar o PT, e Lula tem pelo menos uma fonte que assegura que os protestos não eram espontâneos. Vladimir Putin, mandatário na Rússia, alertou o ex-presidente de que havia uma orquestração. Com base em quê Putin fez tal afirmação? A Rússia tem serviço secreto atuante.

Publicamente, ainda não se sabe quem esteve por trás daquelas Jornadas. Mas a história se encarregará de contar, como aconteceu depois de 1964.

O MPL não deveria tomar como ofensa uma declaração que pode ser o estímulo para que se busque resposta para o golpe, e nunca mais se repitam os erros.

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PS: Nos primeiros dias, as manifestações também me impressionaram, e eu dei entrevista para estudantes de uma universidade, e fiz palestra sobre  importância daqueles eventos. Mas logo depois percebi que as Jornadas de Junho não resultariam em nada positivo para o Brasil. Não se deve manter o que se disse por vaidade, quando se tem compromisso com o verdadeiro interesse público.