
Na noite de quinta-feira (31), William Bonner se despediu do Jornal Nacional após 29 anos à frente da bancada. O momento, que poderia marcar uma reflexão sobre o papel da imprensa em tempos de crise democrática, acabou revelando o oposto: o apresentador usou sua última fala para reafirmar a “neutralidade” da Globo e criticar o “mundo polarizado”, sem mencionar a chacina no Rio de Janeiro, que deixou 121 mortos e segue sendo tratada pela emissora como um “confronto entre criminosos e a polícia”.
Durante o encerramento, Bonner declarou: “Se a gente for fazer comentários no Jornal Nacional, estaremos impondo a milhões de brasileiros uma certa opinião, e nós achamos que esse não é o nosso papel. Ao contrário, o nosso papel é municiar o espectador de opiniões de pessoas que estudam o caso, que têm visões sobre aquilo — e aí ele forma sua própria opinião. E isso não é uma teoria minha; eu herdei isso no JN. É a missão histórica do jornal”.
A fala soou como um manifesto pela imparcialidade jornalística, mas, no contexto atual, ecoou como justificativa para o silêncio cúmplice diante da barbárie, assim como a emissora sempre agiu em momentos históricos, como as Diretas Já por exemplo, um clássico caso em que a Globo foi arrastada para o centro das decisões sem querer ou admitir.
No caso da violência em tempos de fake news e opressão pela extrema-direita, na mesma semana da operação mais letal da história do Rio, o Jornal Nacional exibiu, sem qualquer contestação, imagens produzidas pela própria Polícia Militar, reproduzindo a versão oficial de “guerra ao crime”. O tratamento dado à chacina repete o padrão histórico da Globo — o de legitimar a violência de Estado e transformar execuções sumárias em ações heroicas. Enquanto corpos se amontoavam nas ruas da Penha e do Alemão, o telejornal apresentava a operação como “resultado da integração das forças de segurança”.
A escolha editorial reforça o abismo entre o discurso de Bonner e a prática do jornalismo que ele representou por quase três décadas. Ao defender que “o JN é legalista e humanista” e que “não cabe emitir opinião”, o apresentador reafirmou a lógica da neutralidade que favorece o poder — a mesma que normalizou o discurso violento de Jair Bolsonaro, tratou sua retórica golpista como folclore e agora chama massacre de política pública.
A mídia hegemônica, ao insistir em narrar o horror com o tom frio da institucionalidade, naturaliza a barbárie e perpetua o ciclo de impunidade. A operação no Rio, celebrada por governadores de extrema direita e acolhida com complacência editorial, foi apresentada como “sucesso”, sem questionar o número de mortos sem antecedentes criminais ou a ausência de perícias independentes.
Na despedida de Bonner, o Jornal Nacional repetiu o gesto simbólico que define o jornalismo corporativo brasileiro: encerrou o noticiário sem se comprometer com a verdade integral dos fatos. E, ao fazer isso, reforçou que o verdadeiro legado do apresentador não é a busca pela imparcialidade, mas a normalização da violência travestida de jornalismo responsável.