Ao mostrar os BOs de João Victor, o Habib’s lincha o menino e suja mais as mãos. Por Donato

Atualizado em 16 de março de 2017 às 19:09
Arrastado como um saco de cimento
Arrastado como um saco de cimento

 

Buscando desvincular a marca de um episódio trágico, a morte do menino João Victor, o Habib’s emitiu uma longa nota de quatro páginas:

“Como todo menino de apenas 13 anos, poderia ir à escola, fazer amigos, crescer, trabalhar, apaixonar-se por alguém, formar uma família e bem lá na frente, concluir seus dias rodeado pelos filhos, netos e outros que o amassem. No entanto, caiu vítima do mais trágico conjunto de circunstâncias a que milhares de crianças brasileiras estão vulneráveis nos nossos tempos: falta de assistência social, falta de educação, falta de alimentação, falta de estrutura familiar e a devastadora exposição às drogas”, diz o texto.

E é por este caminho que vai todo o documento. Lamenta a morte do garoto e insiste, via existência de laudo, que a morte ocorreu em decorrência de um mal súbito como consequência do uso de drogas e nenhuma relação com as agressões existentes (algumas delas registradas por câmeras, outras relatadas por testemunhas).

Para piorar um pouco, reforça que as imagens dos seguranças arrastando e atirando o menino no chão como um trapo teriam ganhando mais atenção do que o real problema do caso: a marginalização e desamparo social de João Victor.

Quase como um depoimento frente ao delegado, o texto apresenta um detalhado relato do passo-a-passo no momento da confusão, a ligação para a polícia, a ligação para o SAMU, a ‘solicitação de ajuda e recebendo orientações de como proceder o atendimento até a chegada da ambulância’.

Mas não era um depoimento a um delegado e, pelo visto, o Habib’s não dispunha de um advogado na hora de redigir a nota ou então está muito mal assessorado.

Após todo o lenga-lenga que busca a empatia com o leitor, que lamenta a injustiça social e a condição precária da vida de João Victor, a nota ‘mostra provas’ de que o menino já era um caso perdido e cita a existência de dois boletins de ocorrência que envolviam-no. Não apenas cita, dá os números de registro, datas e históricos. João Victor era menor, não poderia ser exposto dessa forma. B.O.s que envolvem menores são mantidos em sigilo.

“O Habib’s infringiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, não se pode fazer isso, divulgar o conteúdo do que tratam os atos infracionais, isso é ilegal”, disse ao DCM o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo. Ele acompanha o caso desde os primeiros momentos.

A rede de lanchonetes persistiu na estratégia de incriminar o menino e terminou derrubando a esfiha com o recheio virado pra baixo, de novo. O Ministério Público informou que vai investigar a empresa pela divulgação dos BOs.

O Habib’s, infelizmente, chora muito mais por ver ‘com tristeza a marca e todos os colaboradores injustamente associados à morte de João Victor’ e lamenta o ‘tribunal das redes sociais’, contradizendo-se na pressa: “Mesmo que nos primeiros momentos o silêncio nos prejudicasse, atendemos a esse clamor da forma mais responsável possível. Diante de um fato grave como esse, envolvendo a morte de um menor, era necessária a apuração dos fatos. Aguardamos a manifestação das autoridades envolvidas e do poder público.”

Ao se aferrar ao único laudo até agora, que ‘contraria jugamentos precipitados’, o Habib’s exclui veementemente a responsabilidade das agressões na morte do garoto. Pode não ser tão simples. A queixa por estar sendo vítima do pós-verdade não autoriza um comunicado assim, digamos, pré-verdade.

“A família fez o pedido de exumação pois há contradições. Há dois testemunhos sobre as agressões e mais o trecho de gravação no qual o menino é jogado no chão. O laudo é uma prova, mas deve ser analisado em conjunto com outras provas. Portanto espero que na próxima semana a delegada acate o pedido de exumação”, afirmou Ariel de Castro Alves, por telefone.

Leia a nota na íntegra:

Há mais coisas por trás da tragédia do João Victor do que mostram as notícias e as redes sociais.

João Victor era um menino que possuía o que a vida oferece de mais precioso: o futuro todo pela frente para ser construído.

Como todo menino de apenas 13 anos, poderia ir à escola, fazer amigos, crescer, trabalhar, apaixonar-se por alguém, formar uma família e bem lá na frente, concluir seus dias rodeado pelos filhos, netos e outros que o amassem.
No entanto, caiu vítima do mais trágico conjunto de circunstâncias a que milhares de crianças brasileiras estão vulneráveis nos nossos tempos: falta de assistência social, falta de educação, falta de alimentação, falta de estrutura familiar e a devastadora exposição às drogas.

Algo poderia ter sido feito. Fatos anteriores já sinalizavam seu destino. No dia 07 de agosto de 2014 o B.O. nº 8.362, registrado no 13º DP da Casa Verde, descreveu o primeiro envolvimento de João Victor com a polícia, aos 11 anos de idade, num episódio de roubo e ameaça à vítima. No dia 26 de setembro de 2015 o B.O. nº 10.497, registrado no 20º DP da Água Fria, relata que João Victor foi encontrado sozinho no Terminal Cachoeirinha, encaminhado ao Hospital do Mandaqui e após alta hospitalar foi conduzido pela polícia para a delegacia na qual o Conselho Tutelar lhe providenciou abrigo já que a família não foi localizada.

João Victor fazia parte dos 24 mil meninos e meninas em situação de rua nas 75 principais cidades do país, por motivo de discussão com os pais, violência doméstica e uso de álcool e drogas (dados da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal). Ele foi mais uma vítima da dependência química e do abandono de instâncias que teriam a obrigação social e moral de lhe estender a mão.

Um garoto de apenas 13 anos, sozinho, não tem como vencer tais obstáculos e a realidade, a triste realidade, acaba se impondo da forma como se impôs.

No dia 26 de fevereiro o Habib’s, como toda a sociedade, assistiu, chocado, à interrupção da curta vida de João Victor
Por tudo o que ocorreu, com tristeza, vimos nossa marca e todos os nossos colaboradores injustamente associados à morte do João Victor.

Sofremos boicotes, funcionários foram ameaçados, clientes foram intimidados e recebemos manifestações nas nossas portas, além de acusações, críticas e imputações injustificadas vindas das mais diversas fontes, até que o laudo oficial do Instituto Médico-Legal revelou a real causa da morte: “… a morte ocorreu de forma súbita e teve origem cardíaca, relacionada ao uso de substâncias entorpecentes/ilícitas.”

Além disso o laudo também confirma que nenhuma agressão foi observada, contrariando os julgamentos precipitados.

Mesmo que nos primeiros momentos o silêncio nos prejudicasse, atendemos a esse clamor da forma mais responsável possível. Diante de um fato grave como esse, envolvendo a morte de um menor, era necessária a apuração dos fatos. Aguardamos a manifestação das autoridades envolvidas e do poder público, colocamo-nos à disposição da família para ajudá-la e afastamos imediatamente os funcionários envolvidos. Enquanto buscávamos entender o que de fato aconteceu, o tribunal das redes sociais e da opinião pública já havia emitido seu veredito. Não é a toa que a palavra do ano, segundo o Dicionário Oxford, é “pós-verdade”.
Diante de tanta polêmica, consideramos importante levar a público as informações derivadas das investigações, dos relatos, dos documentos oficiais, dos laudos e dos fatos que se desenrolaram nos últimos dias:
1. Há registro de telefonema feito pelos funcionários da loja para a Polícia Militar, antes do acontecimento, solicitando ajuda policial e relatando o comportamento de João Victor perante os clientes dentro da loja.
2. As imagens entregues à Polícia Civil mostram João Victor com dois pedaços de pau na mão ameaçando pessoas, funcionários e danificando o carro de um cliente.
3. Após ocorrer o mal súbito há imagens – que reprovamos – envolvendo dois funcionários que foram afastados e prestaram depoimento à Polícia do porquê agiram dessa forma.
4. Há registro de telefonema feito pelos funcionários da loja ao Samu imediatamente após perceberem o mal súbito, solicitando ajuda e recebendo orientações de como proceder o atendimento até a chegada da ambulância.
Nem tudo ainda está 100% claro para nós, assim como não está para a sociedade. O que sabemos é que as cenas chocantes dos funcionários retirando João Victor do meio da rua movimentada — somadas à sua falta de experiência em situações de resgate — tornou-se assunto maior que o problema social existente no país e ainda maior que as causas que originaram sua morte, descritas pelos socorristas, pelos médicos do hospital e pelo médico legista do Instituto Médico-Legal.
Ainda que tudo não esteja claro, há que se apontar alguns fatos relativos ao tema agressão.
5. Em nenhum dos momentos distintos ocorridos os policiais militares, socorristas, médicos e autoridades envolvidos apontam qualquer sinal de agressão a João Victor e isso está claramente indicado nos documentos oficiais.
6. O laudo do Instituto Médico-Legal descreve a ausência de qualquer agressão:
– Couro cabeludo sem lesões … calota craniana sem fratura.
– Internamente ausência de lesões traumáticas.
– Ausência de lesões ou sinais hemorrágicos em região cervical.
– Ausência de lesões traumáticas em parede toráxica.
– Sem outras alterações e/ou lesões de interesse médico-legal.

7. Em sua discussão e conclusão, o laudo ainda relata:
– Alterações cardíacas agudas e crônicas.
– O exame complementar toxicológico nº 3527/2017 evidenciou a presença de cocaína … Isto indica uso crônico de análogos da cocaína.
– Estas substâncias (cocaína e solventes) são miocardiotóxicas e estão associadas a morte súbita de origem cardíaca … cuja causa mortis, baseando-se nos achados, ocorreu em decorrência de cardiopatia precipitada e agravada por uso de substâncias entorpecentes/ilícitas.
Estamos chocados com a morte de João Victor porque não há algo que simbolize tanto a vida como um garoto de 13 anos de idade.
Todas as 18.000 pessoas que fazem o Habib’s estão abaladas, tristes e enlutadas. Como organização e como conjunto de pessoas que também são filhos de alguém e pais de alguém, o Habib’s conhece os riscos a que nossas crianças estão expostas.
Não é de hoje que, não por palavras mas por ações, o Habib’s tem trabalhado para impedir tragédias dessa natureza. O Projeto Ciranda Urbana, fundado há 10 anos e mantido integralmente pela empresa é uma das faces desse trabalho. No coração da comunidade de Vila Andrade, na cidade de São Paulo, 250 crianças são assistidas por esse projeto. Nele recebem educação, alimentação, assistência psicológica e outros recursos. Essa assistência se estende aos seus pais com oficinas para geração de renda e até mesmo apoio financeiro. Tudo isso condicionado à frequência escolar comprovada. É assim que o Habib’s mantém crianças longe das ruas e das suas ameaças, estimula o estudo e promove a união familiar.
Mas há mais. Patrocinamos eventos como o “Só Fica Fera Quem Não Mexe Com Drogas”, que reúne a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Rotary Club e centenas de crianças, justamente para afastá- las das drogas. Para nós esse é um trabalho sem data para acabar. É um compromisso permanente.
O Habib’s e seus 18.000 funcionários lamentam profundamente os fatos ocorridos e se comprometem a manter e ampliar seus projetos sociais direcionados às crianças, acreditando num futuro melhor para nosso país.