Ao padre Fábio de Melo e a quem possa interessar

Atualizado em 14 de maio de 2018 às 13:20

PUBLICADO NA CARTA CAPITAL

Pois é, padre, o exercício do amor anda cada vez mais difícil. Nesses tristes tempos em que vivemos, em meio à polarização, a ódios acirrados, à violência constante, é preciso ter responsabilidade com o que se pratica e o que se prega.

Nenhuma convicção religiosa dá a quem quer que seja o direito de desrespeitar, de vilipendiar a fé do outro. Foste mais do que infeliz em tuas “colocações”. Foste intolerante e racista.

Muitos sairão em tua defesa, dizendo que nós, macumbeiros, exageramos, que foi só uma brincadeira, que não tiveste intenção de nos ofender, que sempre procuraste construir o diálogo inter-religioso e sempre foste respeitoso com outras crenças. Agora sabemos que não é verdade.

A cada ato racista, ouvimos sempre as mesmas desculpas. Todo acusado corre lá na senzala e traz correndo a avó negra. Não fizeste diferente, lançaste mão do mesmo artifício em teu pedido de desculpas: “O candomblé fez parte da minha origem.” Lamento, mas isso não te isenta, padre.

Pedir perdão aos que se sentiram ofendidos é muito pouco. Posar ao lado pais e mães de santo, visitar terreiros, abraçar e beijar criancinhas pretas não te exime da culpa. Foste intolerante e racista e se estivéssemos em um país sério, desses que fazem valer a legislação, terias de responder em outras instâncias. Mais uma vez teus seguidores dirão que estou a exagerar. Mas no que difere tua atitude, padre, daquela do pastor que chutou a santa?

O vídeo viralizou, padre, e lá as palavras, o tom sarcástico, a intolerância e o ódio às práticas do candomblé e da umbanda estão explícitos. Só faltou dizer “chuta que é macumba”, mas talvez tenhas cometido algo ainda pior. Ao pedir perdão, não o fizeste com humildade, ao contrário, reafirmaste tua crença como superior, dizendo: “fui infeliz na forma como expressei o meu crer”.

Podemos expressar nossa crença desrespeitando a crença alheia? Temos o direito de evocar nossas convicções religiosas para nos livrarmos de obrigações a todos impostas?

“Nunca quis ofender ou desmerecer quem quer que seja”, declaraste. E os que se sentiram ofendidos, como eu, fazem o que, padre? Recebem-te para um chá da tarde como se nada tivesse acontecido? Fazem uma reunião contigo e o arcebispo, dão um abraço e trabalham de mãos dadas por um mundo melhor? Perdoam-te porque és humano e errar faz parte?

Achaste mesmo que ias dizer o que disseste sem que nenhuma voz se levantasse para denunciar tamanha injustiça? Não sei se tu sabes, padre, mas és um pop star. Tens milhões de seguidores nas redes sociais, vendeste outros tantos milhões de CDs e livros. Incitar ao ódio, ao desrespeito, à violência não pode ser princípio cristão.

Não sei se ouviste falar de Dom Hélder Câmara. Aliás, nem sei se a igreja a que serves é a mesma à qual ele servia. Dom Hélder foi um grande defensor dos direitos humanos, sobretudo durante os duros tempos da ditadura. Fiquei encantado ao vê-lo falar dos orixás com propriedade e profundo respeito. Não se tratava, padre, de respeito apenas pela crença do outro, mas pela cultura e por toda história de resistência do povo negro no Brasil.

Os tempos agora são outros, tão duros quanto aqueles, mas outros. Hoje, a igreja de Cristo se arvora em não perder fiéis para as midiáticas e espetaculosas igrejas neopentecostais. Essas, padre, que chamam babalorixás de pais de encosto e que demonizam as divindades e as práticas do candomblé.

Infelizmente, manifestaste o mesmo sentimento, fizeste exatamente igual. Talvez com uma diferença: inseriste em teu discurso o termo “com todo respeito”, o que só tornou ainda mais indelével teu ato de desprezo pela religiosidade afro-brasileira.

“Com todo respeito a quem faz macumba, pode fazer, pode deixar na porta da minha casa, se tiver fresco a gente até come”. Teus fiéis riram, mas eu chorei. Usar mais um estigma para humilhar aqueles que não podem sequer professar a própria fé sem o risco da perseguição, da violência, foi de uma crueldade sem tamanho.

Meus antepassados, padre, chegaram neste País acorrentados, na condição mais vil a que um ser humano pode ser submetido. Tua igreja dizia que não tínhamos alma e nos batizava compulsoriamente. Com o pretexto de nos salvar, justificaram a maior de todas as atrocidades, o maior de todos os crimes, a escravidão.

Não reconhecer a cultura e a crença do outro é o mesmo que negar sua humanidade. Eis a base do racismo e toda intolerância. “Quero o esclarecimento espiritual que me coloque ao lado de todos. Diferentes e iguais a mim. Somos irmãos e não me sinto melhor que ninguém.” Será mesmo, padre? Como bem disseste, somos irmãos, mas não somos iguais.

Se bem me lembro, Jesus teria dito “amai-vos uns aos outros”. Será que esse amor que Cristo preconizou só cabe entre iguais? Será que esse Cristo que ensinou que fora da caridade não há salvação aprovaria seu gesto? Será que não deviríamos nos preocupar em espalhar mais amor no mundo, padre? Será que Deus é um só e que todos podemos nos unir através Dele?

Pra quem toma pedrada todos os dias, de forma simbólica ou literal, é muito triste perceber que uma persona pública, que poderia contribuir na construção de uma cultura de paz e no diálogo inter-religioso, faz uso do púlpito para fomentar mais preconceitos e desmerecer uma tradição preservada a duras penas.

Até hoje, padre, terreiros de candomblé são invadidos, tanto pela polícia quanto por traficantes supostamente associados a igrejas cristãs neopentecostais. Cidadãos são mortos por motivos religiosos, por questões raciais e de gênero, por sua orientação sexual. A igreja de Cristo não pode se apartar desses problemas que a sociedade produz. Não é essa a vocação do verdadeiro pastor.

A defesa dos direitos humanos deve ser obrigação de qualquer liderança religiosa. Construir um mundo em que possamos coexistir respeitosamente cabe a todos. Não foi um discurso vazio, um deslize, uma gafe. Uma declaração intolerante e racista não pode sair nem da boca de um cidadão comum, muito menos da boca de um sacerdote com tamanha projeção.

Não te estendo a mão, padre. Não seria capaz de te abraçar. Não sou cristão. Não tenho culpa. Se perdoar é um dom divino, então, que Deus te perdoe, porque eu, não.